O Big Brother Brasil 22 trouxe para o seu cenário a artista Linn da Quebrada e, com ela, também eclodiu a realidade diária de transexuais, travestis e pessoas não-binárias. O uso do pronome masculino para se referir à Linn parece ter se tornado um instrumento para atingi-la, ao ponto da também participante Eslovênia afirmar para Lucas: “Errar é bom. Seja com pronome, seja com julgamento, seja sobre jogo”.
No recente episódio, Lucas havia se referido à Linn no masculino, a despeito de estar tatuado na testa da artista o pronome com o qual se identifica. Porém, não é apenas no contexto do BBB 22 que a intolerância em relação às pessoas transgênero borbulha.
A temática sobre identidade de gênero se encontra em alta em boa parte dos discursos dos religiosos. Ano passado, no mês de outubro, quando se celebra o dia das crianças (12), algumas igrejas fizeram a temática do evento de “comemoração” voltada totalmente para a afirmação de que menina usa rosa e menino usa azul, com a finalidade de reafirmar a tese de que se a criança nasceu com determinado sexo biológico, este condiz com o seu gênero.
Mas, a despeito de toda discussão contemporânea em volta dessa tese, como a Bíblia relata que Deus enxerga os gêneros masculino e o feminino? Bem, primeiramente é importante esclarecer o que é transgênero.
Transgênero é a pessoa que não se identifica com o gênero com o qual foi registrada no nascimento. Por exemplo: a pessoa nasceu com o sexo biológico reconhecido como de menina, mas com o decorrer da vida se percebe e se identifica com o gênero masculino. Por outro lado, a pessoa cisgênero é aquela que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no registro de nascimento.
Um ponto importante para essa compreensão é entender que sexo biológico e gênero são conceitos distintos. Inclusive, essa não é uma temática nova. Simone de Beauvoir, na sua obra de dois volumes O Segundo Sexo, já explicava que ser mulher não é um conceito do campo biológico:
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino” (BEAUVOIR, 1967, p.9).
Essa fala de Simone Beauvoir é bastante interessante quando comparada à descrição bíblica da criação humana. O Livro de Gênesis conta que “macho” e “fêmea” Deus os criou. Ou seja, Deus não criou o “homem” e a “mulher”. Deus criou o macho e a fêmea, assim como foi com todas as espécies de animais.
Inclusive, o original hebraico das Escrituras nos relata que Deus criou “zakhar” (macho) e “nqevah” (fêmea), os quais não se relacionam com o gênero, mas sim com o sexo biológico. No capítulo 5:2 do Livro de Gênesis, isso fica evidente:
“Macho e fêmea os criou; e os abençoou, e chamou o seu nome Adão, no dia em que foram criados”.
Por sua vez, a versão em inglês A Conservative Version – ACV nos diz que Deus os chamou “Man” (homem):
“male and female he created them, and blessed them, and called their name Man, in the day when they were created.” (macho e fêmea os criou, e os abençoou, e chamou eles pelo nome “Homem”, no dia em que os criou).
Observe o relato: Deus fez macho e fêmea e chamou os dois de Adão ou Homem. É isso que nos diz o livro de Gênesis no original hebraico. Imagine Deus falando para Adão e Eva: “O nome de vocês é Adão”. Foi isso o que aconteceu, a despeito de Adão ter sido criado com o sexo biológico masculino e Eva com o sexo biológico feminino.
Importante destacar que Deus os chamou pelo nome Adão no sentido da palavra masculina “homem”, e não no sentido de “humanidade”. Com efeito, quando pesquisamos a palavra hebraica “haadam”, percebemos que é uma palavra masculina, podendo significar “homem”, “humanidade” ou “homem pré-histórico”. Para a descrição feminina, existia a palavra do hebraico “chavah”, traduzida como Eva, cujo significado é “mãe de todos os viventes”. Conforme relatado no Gênesis 3:20, a mulher recebeu o nome de Eva, o qual foi conferido depois por Adão.
Será, então, que a passagem descrita no livro de gênesis sobre a Criação Humana apresenta realmente fundamento para a condenação das Pessoas Transgênero?
Para alguns religiosos, as pessoas transexuais, travestis e não-binárias se encontram fora do Projeto do Criador, pois Deus criou o Homem com órgãos sexuais e reprodutores masculinos e a Mulher com órgãos sexuais e órgãos reprodutores femininos. Tudo muito bem definido, no seu “devido” lugar, segundo defendem.
Ocorre que esse discurso é incoerente, por exemplo, com a existência das pessoas intersexo, representadas pela letra “I” da sigla “LGBTQIAP+”, as quais nascem com características biológicas femininas e masculinas, desconstruindo essa pregação religiosa do binarismo heteronormativo.
Para se entender a intersexualidade, é preciso primeiramente esclarecer que sexualidade, transexualidade e intersexualidade são conceitos distintos.
– Sexualidade diz respeito à pessoa por quem alguém se relaciona afetivamente ou sexualmente;
– Transexualidade diz respeito à uma identidade de gênero assumida por alguém. Esse termo, inclusive, é criticado por usar a expressão “sexualidade”. Defende-se que o mais coerente é falar Transgeneridade;
– Intersexualidade diz respeito ao sexo biológico ou aos componentes biológicos da pessoa, os quais podem apresentar variações chamadas de Estados Intersexuais.
A despeito da sociedade impor que homem nasce com pênis, testículos e cromossomos XY e mulher nasce com vagina, ovários, úteros e cromossomos XX, há pessoas que nascem com as duas características. É caso, por exemplo, de Daila Coyle, uma mulher que descobriu aos 14 anos que não menstruava porque nasceu com testículos internos (matéria Jornal Correio Braziliense, 25/08/2020).
Dentro do conceito cromossômico, têm-se os chamados Estados Intersexuais, de modo que pessoas intersexo não se enquadram no conjunto de pessoas XX ou XY. Um indivíduo intersexo pode ter variações cromossômicas como XXY, XYY, XXO, etc.
Desse modo, o discurso biológico que é utilizado pelos religiosos para a condenação das Pessoas Transgênero é derrubado pela existência das Pessoas Intersexo, as quais também fazem parte da Obra Criadora de Deus e não estão descritas no Livro de Gênesis.
Nesse ponto, inclusive, ressalto que a palavra “gênesis” significa “fonte”, “origem”, “início”, ou seja, é o “ponto de partida”. É onde tudo começa, e não o fim em si mesmo. A tese de que a criação de Deus se limita ao Livro de Gênesis não apresenta coerência nem com o próprio significado da palavra. Inclusive, espécies de animais são descobertas até hoje pelos cientistas.
Portanto, Deus fez, sim, macho e fêmea distintos biologicamente, segundo o projeto que Ele mesmo determinou em relação à procriação para aquele momento. O homem e a mulher precisavam gerar filhos e povoar a terra. Para isso, então, o homem foi feito com um pênis e a mulher com a vagina. Tudo isso foi arquitetado pelo Criador. Entretanto, isso não limita ao projeto de criação de Deus.
O ponto de interrogação, então, passa a ser o seguinte: se existia uma palavra equivalente a Adão no feminino, por que Deus não chamou logo a mulher pelo nome Eva? Será que realmente essa questão de distinguir o gênero pelo sexo biológico era tão primordial para Deus? Ou isso é uma pauta para os homens? Precisamos distinguir quando uma opinião, colocada como sendo de Deus, na verdade, diz respeito ao preconceito de quem a emite.
O fato é que se fosse tão importante para Deus essa distinção que os conservadores pregam hoje, então por que macho e fêmea seriam chamados de Adão? E isso é interessante, pois Adão e Eva tiveram filhos depois. Logo, o macho foi criado com o órgão sexual tido como masculino e a fêmea foi criada com o órgão sexual tido como feminino. Apesar disso, independente de seus órgãos sexuais, Deus os chamou pelo nome masculino Adão!
A verdade que os conservadores se negam a enxergar é que o homem ter sido formado com órgãos sexuais e reprodutores reconhecidos como masculinos e a mulher com órgãos sexuais e reprodutores femininos diz unicamente respeito ao sexo biológico, mas não ao gênero, de modo que essa intolerância social e religiosa não possui amparo nem científico e nem bíblico. Simples assim!