Nesta segunda-feira (27/11), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou o ministro da Justiça Flávio Dino (PSB-MA) e o subprocurador-geral Paulo Gonet respectivamente para os cargos de ministro do Supremo Tribunal Federal e Procurador-Geral da República. Afinal, o que essa tal nomeação pode trazer de benefícios e retrocessos em matéria de direitos para as pessoas da comunidade LGBTQIA+? Para responder a esta questão, é necessário entender a função atribuída a cada um desses diferentes atores institucionais do nosso jogo político.
O Supremo Tribunal Federal, ou simplesmente STF, é a mais alta corte de justiça do Brasil, composta por onze juízes (ministros), cujos salários servem como referência para a remuneração dos demais servidores públicos do país. A função do STF é múltipla. Primeiro, o Tribunal julga pessoas com prerrogativa de foro, também conhecido como foro especial, isto é, pessoas que exercem função pública, como o presidente da república, seu vice, ministros de estado, senadores e deputados federais. O que pode parecer um privilégio, pode ser também uma desvantagem, visto que não há a possibilidade de recursos depois do julgamento feito pelo STF. Por segundo, o Tribunal também tem por função exercer o controle de constitucionalidade das normas do direito brasileiro. Qualquer suspeita de que uma norma possa violar os princípios e regras da Constituição Federal de 1988 é submetida à apreciação dos ministros, que podem determinar a interpretação adequada a fim de harmonizá-la com nossa Constituição, inclusive exigindo que todos os juízes do país sigam esse mesmo entendimento. Terceiro e último, o Supremo também tem a função de ser a última instância recursal, dando a palavra final a respeito da jurisdição, quando existe a suspeita de que a Constituição Federal possa ter sido violada durante o julgamento de algum caso em instâncias inferiores. Acima do Supremo Tribunal Federal, no direito brasileiro, não há outro tribunal a quem se possa recorrer. Daí se explica sua enorme importância, bem como dos ministros que o compõem.
A Procuradoria-Geral da República, por sua vez, está no mesmo grau hierárquico do STF, isto é, ela é o órgão federal do Ministério Público de grau mais elevado do nosso país. A ela cabe atuar tanto no STF quanto no Superior Tribunal de Justiça. O STJ é um Tribunal que tem a função de julgar os governadores dos Estados e do Distrito Federal, bem como uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional brasileiro. Para exemplificar, por eliminação, o direito infraconstitucional pode ser entendido como as normas que estão hierarquicamente abaixo da Constituição Federal, por exemplo: direito civil e direito penal. A PGR é superior hierárquica do Ministério Público da União, que inclui também o MP Militar e o MP do Trabalho. É de responsabilidade da PGR a investigação e a acusação nos inquéritos penais e nas ações penais que tramitam no STF e no STJ contra as pessoas com prerrogativa de foro. Ao mesmo tempo, é também de responsabilidade da PGR propor ações e apresentar parecer nas ações de controle concentrado e/ou difuso de constitucionalidade – respectivamente, ações judiciais cujo objeto é único e exclusivo harmonizar a interpretação de normas à Constituição Federal de 1988, e ações judiciais cujo objeto indiretamente acaba sendo essa harmonização. O papel do Ministério Público é tradicionalmente de custas legis, isto é, de fiscal da lei, portanto suas opiniões são extremamente relevantes para os juízes. Símbolo disso é que o representante do MP costuma sentar-se ao lado direito do juiz.
Cientes dos papéis do STF e da PGR para nosso sistema jurídico, podemos abordar agora o perfil dos escolhidos pelo presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva. O ministro da Justiça Flávio Dino (PSB-MA) foi indicado para ocupar a cadeira da ex-ministra do STF Rosa Weber, que há mais de 22 anos pertencia apenas a mulheres – antes dela, foi ocupada, entre os anos de 2000 e 2011, pela ex-ministra Ellen Gracie, indicada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Apesar de Lula ter ignorado todos os pedidos dos movimentos sociais por diálogo, a fim de manter uma ministra mulher e negra à vaga, deve-se reconhecer que Dino ostenta todos os predicados necessários a um ministro do Supremo Tribunal Federal: reputação ilibada e notório conhecimento jurídico. Sua carreira sempre combinou o conhecimento jurídico com a veia política: Dino viveu doze anos de sua vida como juiz, foi professor de direito da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), foi deputado federal, atuou no Poder Executivo como presidente da EMBRATUR, foi governador do Estado do Maranhão por dois mandatos consecutivos, foi eleito senador da república, mas acabou licenciado para assumir como Ministro da Justiça. Na maior parte do tempo, era filiado ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) e, enquanto governador do Maranhão, teve coragem para assumir iniciativas em defesa dos direitos das pessoas LGBTQIA+, como a criação em 2015 do Conselho Estadual dos Direitos das Pessoas LGBTT, que chegou a ser alvo de uma ação popular, que buscava revogá-lo. Além disso, em abril de 2018, seu governo implementou o uso do nome social por travestis e transexuais nas instituições de ensino estaduais do Maranhão, tão logo o STF julgou favoravelmente a ADI 4275. Ainda como governador, Dino se notabilizou por ações concretas adotadas em favor dos direitos humanos em parceria com a então Secretaria Especial dos Direitos Humanos do governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, sendo até mesmo reconhecido por suas iniciativas. Já como ministro da Justiça, Flávio Dino adotou medidas concretas em defesa da comunidade LGBTQIA+, como quando determinou a abertura de inquérito contra André Valadão por crime de racismo homofóbico por ocasião do mês do Orgulho, em que o líder religioso suscitou que seus seguidores “partissem pra cima” de minorias sexuais. A atuação de Flávio Dino durante os ataques às escolas no começo deste ano, a propósito, foi muito incisiva em relação às plataformas de redes sociais, exigindo que elas adotassem as medidas cabíveis para tirar do ar imagens e videos que não apenas expusessem menores de idade a violência, como também suscitassem ainda mais a prática de ataques e o clima de insegurança para alunos, familiares e trabalhadores. Sua capacidade de articulação com diferentes atores políticos é elogiada e pode fazer dele um ministro pragmático, capaz do diálogo a fim de obter soluções heterodoxas em situações em que poucos vêem saídas. Por outro lado, sua alta popularidade pode servir também de ponto fraco. Se assim não fosse, não teria sido alvo de 120 convocações para prestar esclarecimentos por congressistas bolsonaristas: 107 na Câmara dos Deputados, e 13 no Senado Federal. Lula indicou Flávio Dino, é certo, por ver nele um aliado. Acredito que a nossa comunidade tem razões substantivas para também pensar assim.
O jogo muda, porém, quando analisamos a indicação de Paulo Gonet. Considerado um católico praticante pela Folha de S. Paulo, Paulo Gonet dá mostras e mostras de que pode não ser um defensor dos direitos da comunidade LGBTQIA+ e de outras minorias políticas. Por exemplo, Paulo Gonet já escreveu em 2009 um artigo em que se posicionava contra o direito ao aborto, por entender que a vida humana existe desde a concepção. Não apenas, para ele, o Estado deve “agir de maneira firme e eficaz” contra o aborto. Sabemos que isso é um pleonasmo para a criminalização de mulheres, especialmente pretas, pobres e periféricas, que praticam a interrupção da gravidez em condições adversas, enquanto mulheres com condições financeiras mais favoráveis podem praticá-la em clínicas particulares e com algum amparo mais adequado. É a manipulação dos recursos estatais para perseguir pessoas historicamente desfavorecidas. Acredito que nada é por acaso. O presidente Lula também é contra o aborto e seu mais recente indicado para Defensor-Público Geral da União (Chefe da DPU) Igor Roque foi rejeitado pelo Senado Federal por 38 votos a 35, segundo alguns em razão de sua posição favorável ao aborto. Como se não bastasse, Paulo Gonet também se posicionou, em encontro com Bolsonaro mediado pela deputada federal Bia Kicis (PL-DF), contra a equiparação da homotransfobia ao crime de racismo pelo STF, por entender que se trata de invasão de atribuição do Poder Legislativo por parte do Judiciário. A propósito, o relato dessa reunião merece destaque. Ocorrida em 2019, com a finalidade de buscar um sucessor para a então Procuradora-Geral da República Raquel Dodge, Paulo Gonet foi muito elogiado pela deputada Bia Kicis, que viu nele um “conservador raiz, cristão”. Ao mesmo tempo em que Gonet passa pelo filtro do conservadorismo dos costumes, tem trânsito entre os poderosos, isto é, justamente daqueles que serão seus investigados e potencialmente acusados. Isso não é nada irrelevante depois do trauma da Lava Jato, operação que alimentou tensões entre os universos político e jurídico. Portanto, existe agora um esforço por parte dos articuladores, como Lula, de trazer para as posições de liderança, como a PGR personagens que distensionem as relações, por meio do que se chama de “garantismo”, isto é, posição em que se privilegia os direitos e garantias de liberdades dos acusados e réus nos processos judiciais.
E como tudo isso afeta a nossa comunidade? Devemos interpretar as indicações de Flávio Dino e Paulo Gonet dentro do contexto atual do STF, da PGR e de suas relações com o mundo político. O STF vive um momento de hipertrofia, iniciado no julgamento do Mensalão, continuado na Lava Jato e nos anos Bolsonaro, quando era o único Poder que se opunha aos desmandos do então presidente, mas que nunca mais voltou ao seu tamanho anterior. A PGR ganhou também protagonismo muito grande, especialmente nos anos da Lava Jato, mas, diferente do STF, ela realmente viveu um período de esvaziamento, gestado nos anos Augusto Aras. Foi o momento em que a Lava Jato foi encerrada propositalmente, pois causava um incômodo aos políticos de Brasília. Ao mesmo tempo, a Vaza Jato revelou ilegalidades praticadas por agentes públicos responsáveis pela operação, tornando insustentável manter tudo como estava.
Vivemos, é verdade, num Brasil em que ministros do STF desfrutam de poder enorme: por meio de uma canetada, podem individualmente suspender temporariamente a eficácia de normas de inconstitucionais; podem individualmente suspender temporariamente julgamentos que impactam em bilhões de reais no orçamento de municípios, de estados e da União; e podem individualmente determinar a pauta que será objeto de análise pelo Pleno do Tribunal. Vivemos, pois, um momento da nossa democracia em que se entende o papel contramajoritário do STF para garantir os direitos de minorias contra a tirania da maioria: foi assim com o direito ao casamento homoafetivo, com o direito à retificação de registro de travestis e transexuais não cirurgiadas, com a equiparação da homotransfobia ao crime de racismo e o direito à doação de sangue por homens gays e bissexuais. Portanto, o STF é um palco imprescindível para nossa comunidade ver garantidos nossos direitos.
Infelizmente, tudo indica que não poderemos contar com Paulo Gonet como aliado e isso faz toda diferença. A título de exemplo, foi a PGR interina Deborah Duprat, lá em 2009, quem entrou com as ações que resultaram no casamento homoafetivo em 2011, o direito às Marchas da Maconha e ao direito à retificação de registro de travestis e transexuais em 2018. É claro que não basta ingressar com a ação, é preciso também fazer muita pressão social, como por meio de audiência com os ministros, a fim de que eles ouçam a voz da sociedade civil. Sem essa pressão, o STF é uma torre de marfim isolada da realidade. É nosso papel cobrar do Supremo Tribunal Federal que paute o julgamento das ações de interesse da comunidade LGBTQIA+, como o direito ao uso do banheiro por pessoas trans de acordo com a identidade de gênero e o direito ao aborto até a 12ª semana de gestação. De Paulo Gonet, não podemos esperar nada. Já Flávio Dino não pode, nem deve trair seus ideais uma vez nomeado.