MÚSICA

“Nunca vi tanta gente procurando meu trabalho musical como agora”, declara Leci Brandão, primeira cantora a se assumir lésbica no Brasil, em entrevista exclusiva

Leci Brandão, sempre esbanjando vida e sabedoria, conversou conosco sobre música e política numa entrevista imperdível

A cantora e compositora Leci Brandão.
A cantora e compositora Leci Brandão.

Leci Brandão, que em setembro completa 80 anos, é uma referência primordial para os amantes da música popular brasileira, especialmente do samba.

Nesta edição em homenagem a uma das grandes damas do samba, traremos uma entrevista exclusiva que Leci nos concedeu nesta semana.

Leci Brandão foi precursora na música brasileira em duas frentes: foi a primeira cantora a se declarar lésbica na imprensa do Brasil e também foi a primeira mulher a integrar a ala de compositores da Estação Primeira de Mangueira, uma das mais tradicionais escolas de samba do país.

Leci fez suas primeiras incursões como compositora ainda na pré-adolescência, quando produziu uma paródia para o grêmio estudantil do tradicional Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, onde cursou os ensinos fundamental e médio.

Muitos anos depois, Leci Brandão estrearia no mercado fonográfico, gravando compactos e finalmente seu primeiro LP “Antes Que Eu Volte A Ser Nada” em 1975.

Leci Brandão foi também uma das primeiras compositoras a abordar o amor dos casais LGBTQIAPN+ no Brasil.

No álbum “Questão de Gosto” de 1976 aparece a emblemática “As Pessoas e Eles”.

Já no antológico “Coisas do Meu Pessoal” de 1977, encontramos um dos maiores hinos LGBTQIAPN+ do Brasil, a canção “Ombro Amigo”, que integrou a trilha sonora da novela “Espelho Mágico” da TV Globo.

Em 1980, Leci lança o formidável álbum “Essa Tal Criatura”, cuja faixa-título, considerada um de seus maiores sucessos, aborda uma relação amorosa entre duas mulheres.

A história de Leci Brandão e as histórias que acompanham sua produção musical são inúmeras, por isso, na sequência, traremos uma entrevista que Leci nos concedeu na qual rememoramos vários momentos-chave de sua carreira.

Observatório G: Como foi a influência dos discos do seu pai na sua musicalidade?

Leci Brandão: Eu acredito que pra musicalidade da minha vida com certeza ter vitrola em casa, embora nós fossemos pessoas pobres, foi importante. Eu escutava um pouco de tudo. Escutava samba, chorinho, samba-canção, bolero e, acredito que, na hora que deus apontou pra que eu fosse uma compositora, isso foi importante. Se você observar meu repertório geral você vai ver vários estilos de música. Eu tenho certeza que o que eu ouvi em criança lá na rua Senador Pompeu no centro do Rio de Janeiro, pode ter influenciado, sim, na hora em que eu comecei a compor.

Observatório G: Como foi seu ingresso como compositora na Estação Primeira de Mangueira?

Leci Brandão: Isso aí já é uma parte que a minha mãe e minha madrinha de batismo tiveram responsabilidade porque o Zé Branco, o homem que me apresentou na ala de compositores, ia na casa da minha madrinha que ficava no Morro da Mangueira e também conhecia a minha mãe. Então foi ele quem teve a ideia de me apresentar na ala de compositores que era presidida pelo José Narciso Teixeira(Brogogério).

Observatório G: Como foi a temporada em que você se apresentou no Teatro Opinião?

Leci Brandão: Essa temporada surgiu de um convite de Jorge Coutinho, uma pessoa que, graças a deus, está viva até hoje e que ele me assistiu cantando no palanque da Mangueira, na quadra da escola, a música “Quero Sim”, um samba que fiz em parceria com Darcy da Mangueira. Ele gostou demais porque percebeu que a quadra ficava muito animada na hora que esse samba era cantado na escola e foi ele quem me convidou para ir ao Teatro Opinião participar da noitada de samba que acontecia toda segunda-feira. Isso em 1973. Foi assim que eu fui parar no Teatro Opinião. Cheguei, as pessoas gostaram, então fui convidada novamente. Isso resultou no meu nome no elenco na porta do Teatro Opinião. Meu nome foi pro quadro de chamada do show. Eu passei a participar da Noitada de Show do Teatro Opinião.

Observatório G: Que elementos das religiões de matriz africana você trouxe para a sua musicalidade?

Leci Brandão: Como é normal acontecer com as pessoas de religião de matriz africana tudo começa na Umbanda e foi na Umbanda que eu comecei a ver os ogãs tocando os seus tambores. Eu sempre fiz questão de afirmar que a minha entrada na religião de matriz africana começou na Umbanda e na Umbanda os caboclos e os pretos velhos eram exemplos de guias de fé. Eu sempre gostei muito dos caboclos, sempre pedi consulta aos caboclos e aos pretos velhos também. Quer dizer, são dois caminhos na Umbanda que eu sempre respeitei e eu gosto muito da Umbanda. Depois, com o passar do tempo, nos anos 80, eu fiquei fora desse mundo de gravação, do mundo artístico, porque eu pedi demissão de uma gravadora, a Polygram, em 81. Eu me lembro que fiquei de 81 a 85 sem gravar. Eu estava fora do cenário da música nesse tempo e acabou resultando numa depressão na minha vida. Eu achei que não ia ter mais condições de continuar nada. Foi quando eu conheci a casa de Seu Rei das Ervas, o Ilê de Mãe Alice, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Ali, Seu Rei das Ervas foi quem me deu um sinal de que eu iria reconstruir a minha carreira artística e isso aconteceu de uma forma fantástica, que fez com que eu passasse, a partir de 1985, a gravar na última faixa de cada LP meu uma saudação pra um orixá.

Observatório G: Como era a sua amizade com a Lélia Gonzalez? Ela foi muito influente na sua formação política?

Leci Brandão: Eu conheci Lélia Gonzalez quando trabalhava no departamento pessoal da Universidade Gama Filho, onde eu tive um convite do Ministro Gama Filho em 1968 para trabalhar lá no departamento pessoal. Eu trabalhava numa fábrica anteriormente e ele me deu a oportunidade de ser uma funcionária da Universidade Gama Filho. Como eu trabalhava no departamento pessoal, os professores iam receber os seus cheques de pagamento nesse departamento e foi quando eu tive o prazer e a honra de conhecer a professora Lélia Gonzalez, que era professora da Faculdade de Filosofia. Ela me incentivou muito. Disse que eu tinha que continuar compondo e que as minhas letras eram muito interessantes, enfim. Acho que tudo o que a Lélia falou naquela época e tudo o que ela ensinava nas salas de aula da Faculdade, eu não era aluna da Faculdade de Filosofia, mas eu acompanhava tudo o que a Lélia falava e acredito, sim, que ela tenha contribuído para a minha formação política, para a minha formação nas questões sociais e na luta social.

Observatório G: Você poderia contar como foi sua experiência como atriz na novela “Xica da Silva”?

Leci Brandão: Essa é outra história muito engraçada porque eu recebi um recado da minha mãe que a TV Manchete havia ligado lá pra minha casa pra que eu comparecesse na sede da emissora porque eles queriam me convidar pra uma novela chamada “Xica da Silva”. Eu pensei que era pra colocar música na trilha da novela. Quando eu fui ao prédio da Manchete lá em Parada de Lucas, em Cordovil, eu tava com uma bolsa cheia de LP’s porque achava que era pra pegar alguma música minha pra inserir na trilha da novela. Foi quando o Avancini disse: “Não é pra colocar música na novela, é pra você participar da novela como atriz”. Isso foi uma ideia do Avancini juntamente com o Antônio Pilar. Eu me lembro da frase que ele disse: “Você, pra mim, é a quilombola do século XX”. Foi assim que eu entrei na novela. Fui à Diamantina pra gravar o primeiro capitulo e, na novela, meu personagem era a Severina, mãe do Quiloa, que era interpretado pelo Maurício Gonçalves, filho do nosso querido Milton Gonçalves. Na primeira cena que eu apareci as pessoas gostaram muito. Era pra eu fazer uma participação de 3 capítulos e acabei indo pra o capitulo 145. A novela teve 150 capítulos. Foi uma coisa muito importante na minha vida. Foi uma passagem muito valiosa, muito grandiosa.

Observatório G: Você tem vontade de trabalhar como atriz novamente?

Leci Brandão: Eu acho que atriz, ator, todas essas pessoas, que trabalham na teledramaturgia, elas estudaram, fizeram curso, passaram por todo um processo de ensinamento, enfim. Eu não tinha nenhuma iniciação nesse terreno. Eu sempre disse que sou uma artista popular, sou uma cantora, mas não tive interiormente vontade de entrar nesse caminho da dramaticidade porque eu não tive nenhum estudo sobre isso. Acho que as pessoas têm que ter ensinamento, orientação…tem que ser realmente uma coisa da profissão da pessoa e eu não sou atriz, eu sou apenas uma cantora e compositora popular.

Observatório G: Você chegou a conviver com Cartola, Carlos Cachaça e Nelson Cavaquinho na Mangueira? Se isso aconteceu, que aprendizados você teve com eles?

Leci Brandão: Veja bem, não foi nenhum aprendizado, foi a convivência…porque a minha madrinha morava no Morro da Mangueira e era muito amiga de Dona Zica. Dona Zica era uma pessoa que ia na casa da minha madrinha de forma muito normal e quando eu entrei pra ala de compositores da Mangueira, evidentemente que eu acabei conhecendo Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, enfim. Mas era uma relação normal, a gente se conhecia, a gente se respeitava, eu, principalmente, respeitava muito esses três senhores. Tanto é que no lançamento do meu primeiro LP, Nelson Cavaquinho e Cartola estavam presentes e se apresentaram. O lançamento do meu primeiro LP foi na quadra da Mangueira. O Carlos Cachaça eu conhecia porque o Carlos Cachaça, inclusive, frequentava a casa da minha madrinha também. Então foi uma relação natural, não teve nada demais. É coisa de família preta que se conhece, se dá e se respeita.

Observatório G: Pra você, qual foi a importância da Dona Zica pra Mangueira?

Leci Brandão: A Dona Zica sempre foi aquela mulher protagonista das feijoadas, sempre tinha alguma coisa na casa da Dona Zica e do Cartola, a Dona Zica sempre foi uma expert na culinária. Tanto que foi inaugurado um restaurante na Rua da Carioca chamado Zicartola e Dona Zica é quem comandava a cozinha do Zicartola. Ela era uma pessoa muito simples, muito alegre, uma pessoa muito generosa e foi a grande mestre da mulherada na Estação Primeira de Mangueira. Assim como Dona Neuma também. As residências delas eram próximas, tanto de Dona Zica como de Dona Neuma. Foram as duas mulheres da Mangueira que eu conheci e que tive o privilégio de ter um relacionamento de amizade com elas.
 
Observatório G: A Angela Davis disse uma vez que “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Como você entende isso?
 

Leci Brandão:  Eu acho que isso tem a ver com a questão das mulheres negras quando resolvem sair desse histórico que sempre a sociedade deu da mulher negra sempre ser a empregada, da mulher negra sempre ter sido a escrava que amamentava e que era babá das famílias brancas, enfim. A partir do momento que elas começam a sobressair, começam a botar a cabeça pra fora, entendeu, servem como exemplo para as outras mulheres e isso paulatinamente foi acontecendo no Brasil e hoje eu acho que isso tá bem demarcado, bem presente. As mulheres pretas, que gostam até de serem chamadas como mulheres pretas, elas têm tido um protagonismo muito grande na sociedade brasileira. Acho que ninguém mais hoje pode contar nenhuma história do Brasil atual sem colocar como destaque a mulher preta, a mulher negra.
 

Observatório G: Você sendo mulher, negra e LGBTQIAPN+ consegue enxergar alguns avanços políticos que essa população teve nas últimas décadas?

Leci Brandão:  Acredito que sim! Eu vou tirar o exemplo por mim porque as pessoas nos últimos anos têm me procurado pela minha história de vida. Não que eu tenha escrito algum livro, não, a minha história de vida junto com a minha arte tem interessado elas. Eu acho que as músicas que eu compus, essa juventude de hoje, ela vai pra internet, enfim, e ela descobre que eu falei de assuntos, que eu coloquei vários problemas já existentes na década de 70 que estão hoje nas pautas, sabe? Estão nas pautas da imprensa e é um assunto do país. Eu fico até espantada. Nunca vi tanta gente procurando meu trabalho musical, minha coisa autoral, como agora.

Observatório G: Como você vê a cena contemporânea da música brasileira? O que você gosta de escutar?
 
Leci Brandão: Atualmente a música brasileira está muito diversa. Ela está tendo vários ritmos. Ritmos, inclusive, que eu nem sei do que se trata porque os nomes são outros. Muitos nomes em inglês e eu não sou uma pessoa que tem inglês fluente, absolutamente. Fico observando que está havendo uma revolução. A questão da internet, essa coisa toda digital, isso fez com que tudo fosse transformado, tá tudo transformado, mas eu sinto falta. Eu não sou saudosista, mas eu sinto falta do samba mais autêntico, sinto falta dos boleros, sinto falta do samba-canção, são coisas que eu cresci ouvindo.
 

Observatório G: Você sempre se considerou uma jornalista musical. A canção “Zé do Caroço” pode ser considerada uma crônica musical? O que te inspirou a compor essa canção?
 
Leci Brandão: Bom, o “Zé do Caroço” é resultado de uma história que um amigo meu chamado Claudio, que morava ali na rua Petrocochino lá em Vila Isabel me contou. A rua Petrocochino era a base do Morro do Pau da Bandeira, então o serviço de autofalante do Zé do Caroço já existia. Isso nos anos 70 e o Claudio havia me contado que estavam querendo acabar com o serviço de autofalante de lá porque incomodava uma mulher que morava num apartamento da rua Petrocochino, que era mulher, inclusive, de um militar e que alegava que o serviço de autofalante atrapalhava ela de assistir à novela das oito. Ele estava conversando, me contando essa história, então veio a música e a letra tudo junto, sabe?

Leci Brandão possui uma das histórias de vida mais ricas de elementos para entendermos a música e a história do Brasil.

Por essa razão, seu trabalho é apreciado por pessoas de diferentes gerações e extratos sociais.

Que a obra de Leci continue nos inspirando a lutar por um país mais solidário e democrático!

Viva, Leci Brandão!