Notificação que proíbe discussão de gênero nas escolas é inconstitucional, aponta procuradoria federal

Sala de aula
Sala de aula (Foto: Ilustrativa)

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, divulgou nesta sexta-feira (17) nota técnica sobre um modelo de “notificação extrajudicial” divulgado na internet que pretende proibir a discussão sobre assuntos envolvendo gênero e sexualidade nas escolas.

Procedimento administrativo instaurado pela PFDC para analisar o caso identificou que o modelo de notificação foi produzido pelo procurador regional da República, Guilherme Schelb, em atividade privada não apoiada pelo Ministério Público Federal – instituição constitucionalmente comprometida com a promoção da igualdade de gênero e de orientação sexual e contrária a quaisquer formas de preconceito.

O modelo de notificação vem sendo divulgado na internet, no âmbito de programa autointitulado “Proteger– Programa Nacional de Prevenção da Violência e Criminalidade Infanto-Juvenil”, coordenado pelo citado procurador. A notificação é dirigida a diretores de escolas e professores e afirma que, caso “insistam” em apresentar conteúdos sobre sexualidade e gênero em sala de aula, poderão ser judicialmente processados.

A nota elaborada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão destaca que o autor da notificação incorreu em um erro básico ao confundir o ensino escolar com a educação transmitida no âmbito da comunidade e da família. “Reconhecer que o direito fundamental à educação abrange a educação formal, a não-formal e informal não significa dizer que seus regimes jurídicos sejam iguais, sobrepostos ou hierarquicamente organizados. As modalidades de educação informal e não-formal devem ser respeitadas e protegidas pelo Estado, desde que não violem os parâmetros de direitos humanos e a integridade dos educandos. Já a modalidade formal, escolar, deve ser provida pelo Estado, diretamente ou através da regulação da oferta privada, como forma de assegurar a realização dos objetivos públicos na educação escolar”, afirma a documento.

O texto destaca que o Estatuto da Criança e do Adolescente já assegura que as preocupações e questionamentos dos pais sejam considerados no projeto pedagógico escolar, porém de forma participativa, e não por intermédio de “notificações” unilaterais. De acordo com o art. 53 do Estatuto, “é direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais”.

Para a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, o caráter vago da “notificação” e a citação de artigos de leis que não têm relação com o assunto podem confundir pais e educadores, e ser percebido como intimidatório. Considerando a abrangência nacional do suposto modelo de notificação e o potencial prejuízo que uma interpretação equivocada de seu conteúdo pode causar no meio escolar, a PFDC encaminhou a nota técnica ao Ministério da Educação, à Secretaria Especial de Direitos Humanos, ao Conselho Nacional do Ministério Público, à Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação e à Federação Nacional das Escolas Particulares, entre outras instituições e conselhos de classe.

Leia aqui a íntegra do documento.

Discriminação proibida

A nota divulgada pela PFDC aponta que o modelo de notificação incorre em inconstitucional discriminação ao referir-se de forma preconceituosa à homossexualidade, bissexualidade e transsexualidade como critério para a diferenciação entre o que deve e o que não deve ser falado em ambiente escolar. “A censura a assuntos relacionados à orientação sexual e identidade de gênero nas escolas constitui grave obstáculo ao direito fundamental de acesso e permanência de crianças e adolescentes na escola, pois contribui para um ambiente hostil no qual as diferenças não são respeitadas, dificultando o aprendizado e o processo de socialização”, ressalta a PFDC.

O documento destaca que quase todos os dias são noticiados casos de violência homofóbica – inclusive contra crianças e adolescentes no ambiente escolar – e que, pela proposta da notificação, um professor estaria impedido de discutir, por exemplo, um caso concreto de violência física motivada por discriminação de gênero.

A nota técnica aponta ainda que os princípios internacionais que tratam de orientação sexual e identidade de gênero são precisos em determinar que os Estados, no dever de garantir o direito à igualdade e a não-discriminação, implementem todas as ações apropriadas, inclusive programas de educação e treinamento, com a perspectiva de eliminar atitudes ou comportamentos preconceituosos ou discriminatórios, relacionados à ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer orientação sexual, identidade ou expressão de gênero.

O documento lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF), em mais de uma ocasião, reafirmou que o sistema constitucional brasileiro não admite a discriminação por orientação sexual. Recentemente, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, defendeu no STF – em ação que discute a chamada “Lei da Mordaça” em Alagoas – que “o direito de pais e tutores a que seus filhos ou pupilos recebam educação religiosa e moral que esteja de acordo com as próprias convicções não pode se sobrepor aos princípios de uma educação democrática e pluralista, enunciados na Convenção Americana de Direitos Humanos”.

 

Fonte: Carta Capital

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