Hoje falarei em primeira pessoa. A história aqui contada, merecia ser cantada por Marinês e o seu bando, com os acordes de Dominguinhos e a sanfona de Gonzagão. Essa história deveria ser a pedra do Reino de Ariano Suassuna ou mesmo um Cordel Encantado de Nando. Vou lhes dizer o feito desta mulher, por nome Francisca, que não é a Santa Romana, mas carrega em sua pele os signos da bravura, da fé e da coragem.
Dona Francisca Maria Rodrigues Berto, natural de Uiraúna, sertão paraibano, berço sacerdotal, de música e grandes médicos, deixa, aos 78 anos, mais uma marca de sua trajetória de luta: a formação no curso de Direito, na Faculdade Católica da Paraíba, instituição com mais de cinquenta anos de tradição, na cidade de Cajazeiras, PB.
Dona Francisca, amada “Francinete” para os amigos, percorreu durante cinco anos os corredores e salas de aula da Instituição. Mas além disso, ela se deslocava diariamente mais de 50 km para sair de sua casa e chegar à Faculdade, na vizinha cidade.
Esta mulher representa o triunfo de tantas mulheres sertanejas, moradoras dos rincões do nordeste, que precisam conciliar trabalho, estudo, maternidade e afazeres do lar. Mulheres que abdicaram de sonhos na juventude pelas oportunidades tão longínquas de suas realidades áridas e patriarcais.
Dona Francisca, ao persistir numa jornada de estudos na maturidade, rompe com as estruturas do etarismo, do preconceito que torna a pessoa idosa obsoleta e invisibiliza o potencial de mulheres que retomam as rédeas da sua vida em idade mais avançada.
Ela demonstra que a Academia de Direito precisa dela para ser democrática, includente e justa. O Direito precisa de sua memória, dos seus depoimentos, da sua narrativa e da sua voz, tão firme quanto sua fé.
A fé foi um elemento que sempre a acompanhou e a fez ser ombro e escuta de muitos jovens colegas e de professores também, que bebiam da fonte de sua experiência e sabedoria.
Não bastasse tudo isso que já faz desta senhora um exemplo, quisera o destino que ela se afeiçoasse a um professor LGBT. Este professor que vos fala, ocupa um espaço de luta e criticidade dentro do Direito, estudando e defendendo pautas ligadas aos Direitos Humanos e à Diversidade Sexual e de Gênero.
Dona Francisca me escolheu como orientador do seu Trabalho de Conclusão de Curso e eu aceitei com emoção e responsabilidade. Naquele momento eu recebi um “Sim” da vida, diante de tantos “Nãos” por ser gay a vida inteira.
Uma senhora de 78 anos, que atravessou períodos difíceis da história deste país, mãe e cheia de fé, viu em mim algum tipo de habilidade para caminhar do seu lado. A mão que a sociedade sempre negou a pessoas como eu, me foi estendida por esta senhora.
Talvez pelo fato das nossas lutas se cruzarem e terem, em sua essência, propósitos semelhantes. Ela foi minha pesquisadora e extensionista en vários Projetos acadêmicos e sempre esteve aberta para o novo, para a vanguarda e para as atualizações necessárias que o Direito precisa introjetar para proteger grupos vulneráveis.
Depois de quase quinze anos de carreira docente, não pensei que o chamado de Dona Francisca fosse mexer tanto com as minhas emoções já apaziguadas.
Meu corpo e minha existência nunca tiveram espaço nos esportes, nas gincanas escolares, na moda ou nos modelos eurocêntricos de beleza e poder. E a escolha de Dona Francisca permitiu-me sentir pertencente.
Sua atitude, repito, é o “Sim” que tantos de nós precisamos receber das nossas famílias, dos nossos círculos de amizade, do mercado de trabalho, do poder público e da comunidade. Eu pude contribuir e participar de sua história, sendo quem sou e como sou.
Nós LGBT’s lidamos com culpas, com rejeições e com a necessidade adoecedora de comprovarmos nossos talentos e capacidades. Porque, historicamente, fomos relegados ao desprezo público, aos estigmas e estereótipos. Isso se agrava, ainda mais, com o tempo, porque guardamos essa sensação de “teste” a vida toda. Estamos sempre sob vigilância e alerta. Nossos traços, nossa performance, nosso jeito, voz e fala são objetos de julgamento e de pequenas concessões para os que gozam de maior passabilidade.
Eu pude ver a história se transformar diante dos meus olhos e, mais uma vez, concluir que quando as bandeiras de se encontram a luta é uma só.