MÚSICA

"Nossa obra é uma obra que fala do amor, que fala de tudo", declara Lucina, integrante da fenomenal dupla Luhli & Lucina, em entrevista exclusiva

A dupla Luhli & Lucina
A dupla Luhli & Lucina

Luhli & Lucina foi uma das duplas musicais mais importantes da história do Brasil, tanto pela qualidade estética da obra musical delas, quanto pelo inspirador sonho do amor livre que as duas viveram na prática.

Nesta edição, em homenagem à esta fabulosa dupla, traremos uma entrevista imperdível com Lucina, na qual conversamos sobre a sua parceria musical e amorosa com a saudosa Luhli.

Luhli(1945-2018), cujo nome era Heloísa Orosco Borges da Fonseca, começou sua carreira artística bem jovem e, já aos 18 anos, em 1964, gravou seu LP solo “Luli” pela Philips. Depois desse período, Luhli se desliga do cenário musical por sete anos, dedicando-se neste intervalo à pintura e à programação visual.

Lucina, cujo nome é Lúcia Helena Carvalho e Silva, iniciou sua carreira artística em 1967, como integrante do Grupo Manifesto, com o qual apresentava aos sábados, na TV Continental, o programa “O Mundo é Nosso”. Com o Grupo Manifesto ela participaria, no mesmo ano ainda, do II Festival Internacional da Canção, no qual apresentou a canção “Margarida” de Guarabyra e também do IV Festival da Música Popular Brasileira da TV Record com a canção “Cantoria”(parceria com Luiz Vieira).

Em 1971, a dupla Luhli & Lucina participa do VI Festival Internacional da Canção classificando a canção “Flor Lilás” em terceiro lugar neste evento.

Ao longo dos 25 anos da dupla, Luhli & Lucina lançaram os fabulosos álbuns “Luhli e Lucina” de 1979, “Yorimatã/Amor de Mulher” de 1982, “Timbres, Temperos” de 1986, “Porque Sim, Porque Não” de 1992 e “Elis e Elas” de 1995.

As parcerias de Luhli & Lucina foram gravadas por grandes nomes da música brasileira como Nana Caymmi, Wanderléa, Tetê Espíndola, As Frenéticas, Rolando Boldrin e Ney Matogrosso, que foi o maior intérprete das parcerias delas, fazendo um grande sucesso com a canção “Bandoleiro”, que abre o álbum “Feitiço” de 1978.

Outro fato digno de nota é que Luhli & Lucina formaram um trisal com o fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca até 1990, quando ele faleceu. Viveram com ele e depois da partida do companheiro comum o sonho de um amor sem amarras, que sempre desafiou o conservadorismo arraigado na sociedade brasileira, até mesmo no meio artístico.

Também não podemos nos esquecer de destacar que o nome Luhli foi adotado a partir de 1996, após o término da dupla, pois à época em que o duo existia Luhli usava o nome Luli, sem o “h”, adicionado depois por questões numerológicas.

Em 19 de junho de 2023, data na qual Luhli completaria 78 anos, se estivesse viva, Lucina lança o potente álbum “Nave Em Movimento-A Música Artesanal de Luli & Lucina”. O álbum contém 13 canções das mais de 1.000 que as duas compuseram juntas, sendo que 11 delas são totalmente inéditas.

Para sabermos com mais detalhes a história bonita e singular desta dupla, Observatório G traz uma entrevista exclusiva que fizemos com a cantora e compositora Lucina, que pode ser lida na sequência.

Observatório G: Como você conheceu a Luhli?

Lucina: Conheci Luhli nos anos 70, comecinho dos anos 70, quando eu tinha voltado a estudar, estava na Faculdade e propuseram um grande encontro multiartístico, juntando todas as artes e eu fui incumbida de procurar os compositores e compositoras no Rio de Janeiro e uma amiga comum me levou até Luhli, então, na medida que a gente ia conversando, eu e Luhli, eu fiquei muito encantada com a obra dela. No final da entrevista, eu mostrei umas músicas também que eu tinha e daí nasceu a parceria. Em um mês a gente tinha 20 músicas. Daí ficamos juntas durante muitos e muitos anos.

Observatório G: Qual foi a primeira canção que vocês compuseram juntas?

Lucina: A primeira canção que a gente fez juntas foi uma canção chamada “Nêga”, que nunca foi gravada, ela conmtinua inédita pra sempre. Ela foi a primeira de mais de 2.000 canções.

Observatório G: Como foi o contato de vocês duas com o Lennie Dale e as Dzi Croquettes?

Lucina: O Lennie Dale, ele ficou apaixonado pela “Flor Lilás” que foi a música que a gente cantou no VI Festival Internacional da Canção de 1972, na TV Globo, o último que foi feito naquela época. Ele ficou tão interessado que ligou pra gente, querendo nos conhecer. Desse encontro nasceu uma amizade profundíssima. Então, ele ia estrear um show numa boate em Ipanema e ele tinha montado esse lance das Dzi Croquettes, aí convidou a gente pra fazer parte desse show porque era um show com vários artistas e terminava com eles, o grande show da noite era do Lennie com as Dzi. O bar era do Mièle e aí a gente foi contratada. Nós fizemos o nosso show também junto com eles, fizemos a temporada toda, foram uns três meses mais ou menos de temporada, que explodiu no Rio, foi um sucesso imenso, então fizemos parte dessa turma. Ficamos amigos pra sempre e fizemos umas outras coisas juntos também.

Observatório G: Você disse numa entrevista ao Paulo Paceoli que a dupla Luhli & Lucina recusou propostas de grandes gravadoras porque vocês não queriam descaracterizar o trabalho de vocês. Quais elementos eram singulares no trabalho na dupla que as gravadoras queriam modificar?

Lucina: O nosso trabalho era cotidiano e completamente livre e a gente tinha muito essa intenção de deixar fluir realmente aquilo que a gente tava sentindo e do jeito que a gente queria fazer. Com aquela contraposição de vozes, a maneira de tocar e tudo mais. Então, as gravadoras, como sempre foi, inclusive, continua sendo ou mesmo não tendo esse esquema de gravadoras nessa era totalmente digital, a tendência de repetição é muito grande. A Luhli, como coautora de “O Vira” e de “Fala”, músicas que explodiram com os Secos & Molhados, ficou refém disso. Esse modelo de “O Vira” eles ficaram querendo repetir, entendeu? Diziam: “Ah, tem que fazer um novo ‘Fala’, tem que fazer um novo ‘O Vira’, certo?”. Nós ficamos meio irritadas com essa situação e resolvemos não fazer nada que fosse encomendado. Resolvemos partir pra nossa expressão real e assim fomos até o término da dupla. Por 25 anos a gente fez isso e depois mesmo que a dupla terminou, a parceria não terminou, continuamos a fazer músicas, sempre do nosso jeitinho.

Observatório G: Como se deu a influência da Umbanda na estética musical da dupla?

Lucina: Eu já era da Umbanda, já trabalhava na Umbanda quando conheci Luhli e, então, apliquei a Umbanda na Luhli. Ela ficou muito encantada e a gente começou a tocar tambor. Aprendemos a tocar tocando, na verdade. Entramos na Gira e ficamos ali tocando durante muitos anos. Até um momento em que o dirigente da casa chegou pra gente e falou: “Agora, vocês têm que fazer as mãos, fazer as mãos para tocar, pois isso é uma proteção para vocês”, então a gente deitou, mas não deitou pra fazer a cabeça, deitamos pra fazer as mãos. Evidentemente, com tantos ritmos e com toda uma pesquisa de ritmos que a gente fez ali no terreiro, pensando e percebendo quais eram as emoções despertadas com cada ritmo, o que é que acontecia no coletivo e no individual…Fomos mapeando isso tudo. A gente começou a compor naturalmente músicas que tinham esses ritmos. Foi muito forte esse movimento. A partir daí o Luís Fernando, o nosso companheiro, começou a construir tambores afinados, em série, os quais a gente levava pro palco. Eram dez tambores. A gente levava pro palco os tambores quase que fazendo uma melodia também, junto com as vozes. Isso foi uma marca muito forte no nosso trabalho.

Observatório G: Qual foi a importância do Ney Matogrosso na carreira de vocês duas?

Lucina: O Ney foi muito importante pra nossa carreira e a Luhli foi a pessoa responsável por colocar o Ney nos Secos & Molhados. Quando ela conheceu o João Ricardo e naquele momento ele procurava um cantor de voz aguda. Ela estava cantando em São Paulo e falou pro João: “Eu tenho esse cantor pra você”. O Ney era nosso amigo. Uma das casas onde ele morou, ficava e trabalhava, porque ele fazia artesanato, era a casa da Luhli. Era uma casa grande lá em Santa Tereza, uma casa meio castelinho que tinha um espaço ótimo pra ele fazer os objetos dele. Então, ele tava muito na casa dela, sempre. Foi quando nós nos conhecemos. O que gerou tudo foi a profunda intimidade e amizade da gente. Quando ele saiu dos Secos, a gente já estava no primeiro LP dele, não só eu e Luhli com “Pedra de Rio”, mas Luiz Fernando, nosso companheiro, fazendo todas as fotos e toda a produção gráfica do primeiro LP solo do Ney. A partir daí o Ney gravou muita coisa da gente, fez alguns sucessos, grandes, tipo “Bandoleiro” e é isso. É um amigo. Amigo pra vida inteira, profundamente querido e profundamente íntimo.

Observatório G: Como era o processo de produção, gravação e distribuição dos discos de vocês a partir do momento em que criaram o selo Nós Lá Em Casa?

Lucina: Bom, o selo Nós Lá Em Casa foi criado justamente pra poder distribuir o disco. Mas quem foi o responsável por tudo isso foi o Antônio Adolfo, que tinha retornado dos Estados Unidos e estava com uma carreira brilhante, de muito sucesso no Brasil e, quando ele voltou dos Estados Unidos, quis gravar um disco do jeitinho dele, queria fazer alguma coisa com as músicas mais queridas dele e as gravadoras não permitiram. Então, ele foi atrás de todo o processo, conseguiu saber passo a passo, o que deveria ser feito pra você gravar um disco, editar e distribuir. Todo esse processo ele mapeou e generosamente dividiu com os amigos. Assim, nós fomos as primeiras mulheres a lançar um disco independente no Brasil. A gente distribuía nos shows. A gente levava os LP’s pros shows pra vender. Além dos LP’s das outras pessoas que eram independentes na época, que eram bem poucas. Também acontecia através dos Correios(rindo). Era a coisa mais artesanal do mundo. As pessoas ligavam, mandavam cartas pra gente e a gente mandava pelos Correios. Deu muito certo, foi muito interessante. Bom, além de tudo teve a famosa viagem que a gente fez. Nós arrumamos uma kombi, que a gente tinha. O Luiz Fernando transformou a parte de trás numa cama, com um colchão gigante, embaixo todas as malas, instrumentos e coisa e tal. Na parte de cima um rack com som e luz. Assim a gente partiu Brasil afora, tipo caravana, fazendo shows nos lugares(rindo).

Observatório G: São muito presentes nas suas composições a alusão à natureza. O que você pensa do atual momento do planeta do ponto de vista ambiental?

Lucina: Esse é um dos assuntos mais tristes porque não adiantou nesse tempo todo, todo o movimento que se fez de avisar, do problema do aquecimento global, do desmatamento e de tudo mais. Eu fiz parte de dezenas de projetos de preservação das águas, dos biomas, do tombamento de chapadas, da não-radiação…eu e Luhli. Depois eu continuei também como cidadã e, na minha carreira solo, desci o pantanal inteiro, fazendo oficinas e shows. Eu, Tetê, os Espíndola. Todos nós descendo o pantanal e falando dessa questão. Isso depende muito, obviamente, dos dirigentes do planeta, dos dirigentes das nações. Mas depende também do povo e o povo não muda também. Nem o dirigente muda, nem o povo muda. O povo parece que são eternas crianças, mas crianãs sem noção. Já para os dirigentes, o poder é mais alto do que qualquer coisa. Então, realmente, em termos ambientais, eu não tenho muita esperança.

Observatório G: O que você gosta de escutar da cena contemporânea da música brasileira?

Lucina: Eu gosto de escutar aqueles que eu sempre escutei: Gil, Caetano, Chico, Tom e tantos e tantos outros…Joyce Moreno,,,da minha geração e da nova geração também. É muita gente boa! É uma coisa maravilhosa! Eu gosto do Tó Brandileone, eu gosto de Céu, eu gosto do Gustavo Galo, eu gosto de Anelis Assumpção, eu sou muito ampla(rindo), tá bom? Eu gosto de Zeca Pagodinho, até…Ludmilla…eu gosto de música e tem algumas músicas que, especialmente, me tocam. Tem compositores que eu admiro demais. Tem Tetê Espíndola, tem Alzira Espíndola, a Alzira E, gosto de Mihay. Eu amo música e eu tô sempre buscando e tenho muitos parceiros jovens, muito jovens. Então, eu tento estar muito bem informada e, assim, eu vou escutando de tudo, vou curtindo tudo…é bem amplo o meu gostar.

Observatório G: Em 2014, o cantor Dhenni Santos gravou o álbum “Pedra de Rio”, um tributo à obra da dupla Luhli & Lucina. O que você achou do álbum?

Lucina: O Dhenni escolheu um repertório bem bonito, bem interessante…onde ele pegou músicas de mais de duas décadas, músicas bem recentes, músicas muito antigas, enfim. Gostei muito da escolha de repertório e ele tem uma voz belíssima. Mas, especialmente pra mim, te sendo muito sincera, eu sou a pessoa de pouca nota. Eu gosto das coisas menos orquestradas, com menos elementos, entendeu? Então, é isso…eu gosto do álbum, mas se eu fosse fazer, não teria tanto instrumento. Ele seria mais vazio.

Observatório G: Como você vê hoje a importância da dupla Luhli & Lucina na história da música brasileira?

Lucina: A dupla Luhli & Lucina foram as primeiras mulheres a gravar independente, essa é uma das importâncias. A outra é que é uma obra essencialmente feminina, completamente original, com temas vastos, extremamente cotidianos…aí parte pra uma outra onda, completamente ecológica…Nossa obra é uma obra que fala do amor, que fala de tudo. Então, eu nos considero uma dupla onde uma somou com a outra. Os dois indivíduos estiveram ali absolutamente presentes. Por isso foi tão bom. Por isso aconteceu tanta coisa bonita. Nenhuma das duas tentou sobressair, mas cada uma manteve a sua integridade. Eu acho que isso é a grande mágica. Quando duas pessoas estão muito juntas, mas não se anulam, mas, ao contrário, elas somam, mas mantém a própria identidade. É isso.

Observatório G: Como você definiria a Luhli?

Lucina: Luhli é uma usina de criatividade, de força…é uma estrela brilhante no céu agora. Uma pessoa que já deve estar fazendo uma reunião incrível, uma comunicação entre várias estrelas…é uma querida! Faz muita, muita, muita falta! Uma grande artista!

Luhli & Lucina desafiaram o status quo em todos os sentidos.

A produção musical bastante artesanal e a forma livre e natural como viveram, merece não apenas reverências, mas precisa também ser mais conhecida por todos que não se identificam com a artificialidade que a vida urbana nas grandes cidades tem nos ofececido e sentem vontade de transgredir as normas adoecedoras do capitalismo.

Por essa razão, celebramos a existência e a originalidade dessas duas grandes mulheres.

Viva, Luhli & Lucina!