O samba-choro “Camisa Listrada” do compositor baiano Assis Valente, que se tornou um clássico na voz da pequena notável Carmen Miranda em 1937, trazia em sua letra uma tensão entre um marido que expressa a própria feminilidade durante o carnaval e sua mulher que teme a repercussão negativa desta performance perante uma sociedade ultraconservadora.
Antes de comentarmos a letra de “Camisa Listrada”, porém, faremos uma breve introdução ao conceito ainda pouco difundido de crossdressing, que será o tema destacado na letra desta canção.
O crossdressing é uma prática bastante comum no Brasil sobretudo no período carnavalesco.
Durante esse curto período do ano, muitos homens expressam sua feminilidade e muitas mulheres expressam sua masculinidade.
Porém, o crossdressing é transitório e os seus praticantes vivem uma dupla performance de gênero: ora se identificam com o gênero “feminino”, ora com o “masculino”.
O período de aderência de um crossdresser às características do gênero oposto ao qual se identifica cotidianamente é curto, mas não se restringe apenas ao período carnavalesco, inclusive, pode ser recorrente em vários outros momentos e situações.
Sabemos tambem e é importante relembrar que a definição do que é o “masculino” e que é o “feminino” é bastante fluida e estes conceitos não têm uma ligação estreita com o nosso sexo biológico.
O crossdresser que pertence ao “gênero masculino” e performa ocasionalmente o “gênero feminino” é denominado como Male To Female e a crossdresser que faz o movimento oposto é denominada Female To Male.
Também é importante mencionarmos os Supportive Opposite, que são pessoas não-praticantes do sexo biológico oposto ao do crossdresser, mas que apoiam a prática. “Apoiar” aqui tem um sentido mais efetivo do que apenas “aceitar”. Os Supportive Opposite podem ser amigos/amigas, esposas/esposos ou familiares do crossdresser.
Outra curiosidade é que comumente os crossdressers male to female se autodenominam, quando montados, de princesas e, quando desmontados, de sapos.
Quem se debruçou com mais afinco sobre essa temática foi a antropóloga Anna Paula Vencato na sua tese de doutorado “Existimos Pelo Prazer De Ser Mulher”, na qual ela nos apresenta uma pesquisa que realizou no Brazilian Crossdresser Club em 2008.
Voltando à letra de Assis Valente, percebemos que a esposa-narradora da canção não pode ser classificada como supportive opposite, pois ela nitidamente se incomoda com o fato de o marido romper sua “cortina de veludo pra fazer uma saia” e também com o fato de ele “pegar as suas coisas”, no caso, suas vestimentas, joias e maquiagens e se fantasiar de “Antonieta”. O principal incômodo da narradora da canção parece ser o receio que tem da opinião pública acerca da performance do marido.
O que torna “Camisa Listrada” uma canção peculiar é o registro histórico que ela nos legou de uma prática de performance de gênero comum nos carnavais já na décade de 1930.
Ainda nos dias de hoje, o carnaval tem sido a grande emancipação poética dxs brasileirxs, quando as fronteiras de gênero, raça e classe tornam-se menos rígidas e possibilitam maior liberdade de expressão dos desejos e sonhos, sejam eles quais forem.
Em virtude disso, agradecemos imensamente ao grande compositor Assis Valente por essa obra e também à formidável Carmen Miranda, eterna diva queer, por popularizar a obra de Assis através de suas brilhantes e singulares interpretações.
Viva os dois!