Aos 92 anos, Tiana carrega nas rugas, nos silêncios e nos sorrisos contidos uma história de resistência que atravessa quase um século de exclusão, violência e superação. Negra, de origem humilde, travesti e sobrevivente de múltiplas formas de opressão, ela pode agora entrar para o Guinness Book como a mulher trans mais velha do mundo.
Moradora da periferia de Governador Valadares, cidade mineira onde é reconhecida como a primeira travesti visível, Tiana vive discretamente, mas com a força de quem desafiou todas as estatísticas. No Brasil, a expectativa de vida de travestis é de apenas 35 anos, segundo a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Tiana ultrapassou esse limite quase três vezes — e isso não aconteceu por acaso: foi resistência.
Aos olhos da sociedade, ela nunca foi só mais uma. Desde cedo enfrentou a rejeição da própria família. Sofreu agressões físicas, foi explorada financeiramente pelos irmãos e encontrou portas fechadas por onde passou. Para sobreviver, trabalhou como lavadeira, faxineira e cuidadora de casas, ganhando o suficiente para comer e manter um teto. Tudo isso enquanto carregava nas costas o peso da transfobia estrutural, do racismo e da pobreza.
“Ela é a história viva”, dizem ativistas e pesquisadores que agora se mobilizam para registrar oficialmente a trajetória de Tiana no livro dos recordes. A campanha para incluí-la no Guinness World Records está em andamento, mas o processo é delicado: exige documentos, validações médicas e histórico de identidade de gênero, o que pode ser especialmente desafiador em se tratando de uma mulher trans nascida em 1932.
Mas Tiana não vive de reconhecimento. Vive de memória. Sobreviveu à ditadura militar e a décadas em que ser quem é significava correr risco de vida. Em silêncio, educou vizinhos e desafiou padrões. Sem saber, transformou-se em símbolo.
Hoje, mesmo com a saúde fragilizada e os movimentos mais lentos, ela se torna um marco na luta das mulheres trans negras brasileiras. Sua existência é uma resposta a um sistema que insiste em apagar corpos dissidentes. E é também uma lembrança: o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, mas também é o país onde Tiana vive.
Enquanto o mundo decide se ela merece entrar para os livros, sua história já entrou para algo maior: a consciência coletiva de que viver, para uma travesti negra no Brasil, é um ato político. E Tiana viveu. Vive. E continuará viva na memória de quem resiste.