Entrevista: André Leite
Cartunista consagrada, apresentadora no Canal Brasil e protagonista do primeiro documentário da Netflix Brasil. Está é Laerte Coutinho. Mulher transgênero e pai de três filhos. Assumiu-se em meados de 2010 e imediatamente tornou-se um ícone para a comunidade LGBT. Ainda em 2012, entrou para a dirigência da ABRAT – Associação Brasileira de Transgêneros como cofundadora da instituição. Aos 67 anos, Laerte fala sobre o mito de “sair do armário” no Brasil e externa a sua desaprovação com o atual governo federal do país.
Leia:
Exibindo tanquinho, Thomaz Costa faz reflexão em legenda do Instagram
Letícia Colin elogia Bruna Linzmeyer pela decisão de manter os pelos e rende comentários
O documentário “Laerte-se” está disponível na plataforma digital da Netflix Brasil. Na obra audiovisual das diretoras Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum, a cartunista nos convida a conhecer o seu mundo e refletir sobre a sua longa trajetória de aceitação como mulher.
Entrevista com Laerte:
– Laerte, se você olhar para trás e analisar toda a sua carreira, qual projeto autoral você mais se orgulha de ter realizado?
Acho que a revista Balão, em 72 – junto com o Luis Gê, a agência Oboré, em 78, junto com o Sérgio Gomes. E também a revista Piratas do Tietê, em 90, junto com o Toninho Mendes.
– Existe ainda alguma obra ou sonho que você não conseguiu realizar?
Não sei, André, não sei mesmo. Não consigo pensar em termos de obras ou sonhos, como projetos de contorno mais ou menos definido. Eu meio que vou indo, em algumas direções específicas. E vão aparecendo resultados, claro.
– Você divide a sua vida e ou a sua carreira em antes e após a sua transição de gênero?
Não. Minha transição – se é que dá pra usar esse termo – é resposta a questões que eu coloquei num determinado momento, a partir de novas posturas em relação ao meu desejo sexual. Não vejo o período anterior como uma fase de frustração ou insatisfação – pelo menos não em relação à expressão de gênero.
Aceitação
– A sua própria aceitação como mulher demorou para acontecer?
Acho que sim… Acho que a aceitação é algo que acontece aos poucos, à medida que o processo vai se desenvolvendo.
– O fato de ser famosa lhe trouxe ainda mais medo de “sair do armário”?
Eu nunca me vi como “pessoa famosa”. Enquanto autora de quadrinhos (na época, “autor”), minha popularidade era bem relativa. Meu problema maior, torno a dizer, era com a orientação sexual – com o fato de sentir desejo por homens. Quando resolvi essa parte, a questão de gênero se apresentou; e pude lidar com ela de modo muito mais tranquilo.
Mas preciso dizer que o fato de ter meu processo alvo de atenção da mídia me facilitou bastante lidar com o medo.
– Sair do armário no Brasil é um grande mito, você não acha? O homem ou a mulher se assume LGBT e logo após de abrir uma porta interna, a sociedade faz de tudo para que você se tranque. Onde está o erro neste processo de aceitação em sua opinião?
Gozado, eu li “rito” em vez de “mito” – e faz sentido.
Acho que é um rito, mesmo – em alguns casos bem sucedido, em muitos outros trazendo conseqüências pesadas para a pessoa.
Há situações em que as perdas são enormes, com rejeições na família, na comunidade, no ambiente de trabalho etc. Nosso país ainda é muito agressivo e intolerante em relação às vivências de sexo e gênero, mesmo com progressos que vêm acontecendo e com canais que vêm surgindo – como o Observatório G.
Futuro
– O fim do ministério da cultura foi anunciado logo após 2 dias da posse do novo presidente da república. O quanto isso afetará o seu trabalho e os demais cartunistas do Brasil?
A modificação estrutural que o novo governo implanta é coerente com tudo que estava contido nos discursos do candidato – cheios de obscurantismo, ódio e ignorância.
Não há um projeto de governo, há um projeto bélico em andamento, que vê inimigos na cultura, na educação, na economia, na diplomacia, no ambientalismo, na cidadania.
– Qual o papel da arte na sociedade?
Puxa, André.
Tem gente escrevendo tratados pra responder essa pergunta – eu me sinto frágil frente a ela. Acho que há muitos papéis, mesmo sabendo que esta é uma resposta que não diz quase nada. O papel da arte, o papel do humor, essas são reflexões que eu vou fazendo mas nunca tenho respostas prontas.
– Quais são as suas expectativas com o novo governo sendo uma mulher na comunidade LGBT?
Como disse, o novo governo tem um discurso de truculência, ódio e ignorância, onde uma ministra (que se diz solidária conosco) berra que “menino veste azul, menina veste rosa”.
Para uma pessoa transgênero, como eu, é uma declaração clara de negação. A melhor atitude é reforçar os laços que nos unem, buscar alianças, procurar garantir os direitos que temos – e tentar avançar, mesmo assim.
Não vai ser fácil.
– O que você gostaria de dizer aos seus fãs, e principalmente aos seus fãs da comunidade gay nos dias de hoje? Gostaria de deixar alguma mensagem para eles neste início de ano?
Ninguém solta a mão de ninguém.