O disco “Realce” de 1979 trouxe em duas canções temas e personagens que subvertem as noções tradicionais e binárias de gênero.
“Realce” é o álbum que encerra a trilogia do “Re” de Gilberto Gil, iniciada pelos álbuns “Refazenda” de 1975 e “Refavela” de 1977.
Deste emblemático último disco da trilogia, comentaremos duas canções bastante caras ao nosso tempo.
Em “Super-Homem, a Canção”, Gil nos delicia com o lirismo de uma letra que põe em xeque a ideia de uma divisão radical e cristalizada de gênero, pois, segundo a composição, a “porção mulher” que existe nele, o poeta e, por conseguinte, em todos os homens, é a faceta que o faz viver, entendendo aqui a vida como um movimento dialético que une, muitas das vezes, elementos contraditórios que se alimentam de modo simbiótico.
A inspiração pra compôr esta obra-prima veio de uma conversa que teve com Caetano Veloso, na qual o amigo narrou as impressões que teve do filme “Super Homem” de 1978, dirigido por Richard Donner.
A cena narrada por Caetano que mais chamou a atenção de Gil foi aquela na qual o Super Homem inverte a rotação da Terra para fazer o tempo retroceder e devolver à vida a namorada que havia morrido num acidente.
Já na belíssima canção “Logunedé”, Gil faz uma reverência ao fascinante orixá filho de Oxum e Oxóssi, que passa metade do ano caçando com o pai na sua vertente masculina e a outra metade do ano no rio com a mãe, vivenciando sua faceta feminina.
Logum Edé aparece em muitas imagens com dois objetos que herdou dos pais: o ofá, arco e flecha que herdou do pai para caçar e o abebé, espelho que recebeu da mãe, onde se mira.
A androginia de Logum Edé é bastante complexa pra ser entendida por uma cultura como a nossa, herdeira de uma cosmovisão eivada por valores da tradição judaico-cristã, que, por vezes, nós reproduzimos involuntariamente.
Há, porém, uma lenda bastante interessante associada à Logum Edé, que nos conta da dificuldade que ele tinha de visitar sua mãe, Oxum, pois ela morava no palácio das aiabás, as rainhas de Xangô, onde era vetada a presença de homens. Por essa razão, Logum Edé muitas vezes se vestia com as roupas da mãe para garantir o acesso ao palácio e ficar próximo dela.
As canções de Gilberto Gil sempre abordaram os mais diversos temas com a qualidade estética que singulariza a obra dele dentro desse vasto universo poético que é a música popular brasileira.
Por ser um dos primeiros compositores que nos fez pensar acerca dessa divisão de gênero arbitrária imposta pelos setores mais conservadores da nossa sociedade, Gilberto Gil merece nossos aplausos e reverências.
Viva, Gilberto Gil!