MÚSICA

O amor erótico lésbico na obra musical de Chico Buarque

Chico Buarque sempre abordou de forma primorosa os mais variados temas em suas canções e o amor entre mulheres foi um deles

O cantor e compositor Chico Buarque.
O cantor e compositor Chico Buarque.

Hoje o Brasil celebra o aniversário de 80 anos de um dos maiores cantores e compositores de todos os tempos: Chico Buarque.

Nesta edição em homenagem a este grande artista, vamos nos debruçar sobre duas canções da autoria dele que discorrem sobre o erotismo lésbico.

A primeira canção que escolhemos foi “Bárbara”, parceria de Chico com o dramaturgo moçambicano Ruy Guerra, canção que integra a peça “Calabar ou O Elogio da Traição” de 1973 e que foi censurada pela ditadura militar(1964-1985).

A Censura Federal à época chegou a arranhar os LP’s de Chico no ponto exato em que havia o trecho:

“Vamos ceder, enfim, à tentação

das nossas bocas cruas.

E mergulhar no poço escuro

de nós duas.”

Na peça, este trecho é entoado por Anna de Amsterdã, uma mulher bastante livre do ponto de vista sexual, que tenta consolar a personagem Bárbara, viúva de Calabar, oferecendo seu colo e afeto para a moça.

O mais curioso é que, na cena, Bárbara está atordoada pela morte de Calabar e completamente umedecida pelo sangue dele. Neste desespero oriundo do luto, ela acaba projetando a imagem de Calabar em Anna de Amsterdã, com uma forte referência a um ritual antropofágico.

Bárbara foi um personagem que de fato existiu e teve um filho com Domingos Fernandes Calabar pelos idos do século XVII no Nordeste do Brasil.

Alguns dados do disco “Calabar” se perderam, mas, felizmente, sabe-se que a direção musical foi feita por Dori Caymmi e a orquestração por Edu Lobo. Para os amantes da MPB, essas informações são preciosas.

A outra canção escolhida para tratar da temática do amor erótico lésbico foi “Mar e Lua”, presente no disco “Vida” de 1980.

Esta canção integrou a trilha do espetáculo “Geni” de Marilena Ansaldi e José Possi Neto, obra inspirada na canção “Geni e o Zepelim” do próprio Chico.

No álbum “Vida”, a canção “Mar e Lua” teve os arranjos concebidos por Francis Hime, que também coloriu esta obra com seu magistral piano.

Para compor “Mar e Lua”, Chico Buarque se inspirou numa crônica de jornal que contava a história de um casal lésbico que, não aguentando a pressão moralista na cidade puritana onde vivia, acabou se suicidando nas águas de um rio.

“Mar e Lua” é cheia de simbologias e apresenta a morte das duas não como um fim, mas como uma transfiguração.

É válido lembrar toda a simbologia que cerca o mar, como o local do nascimento e do renascimento e também como a grande urna divina que guarda os segredos do mundo.

A metáfora da lua também é bastante rica. Ora associada ao princípio feminino do mundo, ora aos mistérios nunca revelados à luz do dia.

Como percebemos, essas duas canções abordaram a questão do erotismo lésbico numa época em que a repressão à liberdade sexual no Brasil era bem mais violenta do que nos dias de hoje, embora ainda sejamos o país que lidera o ranking de mortes de pessoas LGBTQIAPN+ no mundo.

Neste sentido, concluímos que compositores como Chico Buarque foram fundamentais para trazer ao público uma faceta da afetividade e sexualidade humanas que tradicionalmente era invisibilizada para que o debate sobre os afetos e vidas LGBTQIAPN+ nunca fosse efetivo.

Chico Buarque, por sua vez, nunca se furtou deste debate nem de qualquer outro na seara da política.

Suas canções abordam os mais diversos temas de forma sempre criativa, sensível, inteligente e com a ironia fina que o caracteriza enquanto compositor.

Por esta razão, saudamos este grande artista brasileiro nos seus 80 anos com orgulho de sermos seus contemporâneos e compatriotas.

Viva, Chico Buarque!