MÚSICA

O metaverso multicor de Serguei

O cantor e performer Serguei, o divino do rock, foi um dos responsáveis por "desencaretar" o Brasil e precisa ter sua memória sempre exaltada

O cantor e performer Serguei
O cantor e performer Serguei

Serguei foi um dos primeiros cantores brasileiros a aderir à estética musical do rock e também ao estilo hippie. Teve, no início de sua carreira, uma amizade colorida com Janis Joplin e foi também um dos primeiros artistas no Brasil a se declarar pansexual, um conceito desconhecido por muitas pessoas e distorcido durante décadas por grande parte dos veículos de comunicação.

Sérgio Augusto Bustamente nasceu no Rio de Janeiro em 1933. Era sobrinho-bisneto do jurista e diplomata pernambucano Joaquim Nabuco, mas sempre foi considerado o outsider da família.

Passou alguns anos de sua juventude morando com sua avó em Long Island, nos Estados Unidos, período crucial para a sua formação artística e adesão ideológica ao estilo hippie que foi sua marca registrada.

Serguei voltou ao Brasil nos anos 1950 e trabalhou como bancário no Banco Boa Vista e como comissário de bordo na extinta Panair e na Varig. Neste último ofício teve seu primeiro contato com estrelas da música brasileira como Erasmo Carlos e Ângela Maria.

Seu primeiro trabalho artístico, porém, não foi como cantor, mas como ator, em 1954, no filme “Toda Vida Em 15 Minutos”, dirigido por Vanoly Pereira Dias.

Em 1966, acompanhado do conjunto The Youngsters, gravou seu primeiro compacto simples, produzido por Ed Lincoln na gravadora Equipe. Na faixa “As Alucinações de Serguei”(Osmar Navarro e Luís de França), Serguei expressou de modo assertivo que nunca teve a menor intenção de renunciar ao seu estilo sonoro hard e ao visual andrógino que o caracterizou.

Na gravadora Polydor, em 1970, o compositor e crítico musical Nelson Motta produziu para ele um emblemático compacto simples. Serguei gravou neste trabalho as irreverentes “Ouriço” de Paulinho Machado e “O Burro Cor-de-Rosa” de Luiz Carlos Sá, o criador do rock rural que, anos mais tarde, formaria o trio Sá, Rodrix e Guarabyra. Em razão deste álbum, Serguei conseguiu uma boa inserção na TV, sobretudo nos programas de Sílvio Santos e do exigente Flávio Cavalcanti. O compacto seria depois recolhido pela censura do regime militar(1964-1985) que considerou subversiva a canção “Ouriço”.

Também em 1970, Serguei reencontrou no Rio de Janeiro a cantora Janis Joplin, que havia conhecido num festival em Long Island, em 1968. Os dois mantinham uma espécie de “amizade colorida” desde essa época. Na ocasião, Serguei apresentou Janis à cantora Alcione e os dois levaram Janis para cantar na boate Porão 73, onde ambos trabalhavam como cantores.

Serguei foi convidado, na década de 1980, pelo Museu da Imagem e do Som, a participar de uma série de depoimentos chamada “Memória do Rock Brasileiro”.

Foi a década de 1990, porém, que consagrou Serguei como um dos maiores nomes do rock brasileiro de todos os tempos.

Escalado para a segunda edição do Rock In Rio, em 1991, no qual fez uma das apresentações mais emblemáticas da história do festival, Serguei também gravou, depois de uma discografia apenas de discos compactos, seu primeiro LP, produzido pelo hitmaker Michael Sullivans. O álbum contou com composições inéditas de nomes como Frejat, Humberto Gessinger e Ney Matogrosso.

Nos anos 2000, Serguei continuaria colhendo os frutos do seu retorno triunfal dos anos 1990, mas também se envolveu em uma polêmica no Programa do Jô Soares, em 2001, que, posteriormente, seria utilizada para insuflar uma série de fake news sobre a pansexualidade nos meios de comunicação e, mais recentemente, nas redes sociais e aplicativos de mensagens.

Jô Soares havia tirado uma brincadeira com Serguei, insinuando que ele havia tido relações íntimas com uma árvore. Serguei, embora tivesse explicado o ocorrido, preferiu relevar a brincadeira de Jô. Em outro momento da mesma entrevista, Serguei se declara pansexual, o que foi o suficiente para que muitas pessoas, equivocadamente, associassem a pansexualidade a uma suposta prática sexual com plantas e objetos, sendo que a pansexualidade é, segundo o Manifesto Pansexual de 2021, a atração por pessoas maiores de idade, independente do gênero delas.

Sobre esse assunto, Observatório G teve um bate-papo bastante esclarecedor com a jornalista e youtuber pansexual Livia Alves do canal Lado Pan:

O Serguei era um artista excepcional mas não era muito bem articulado em algumas entrevistas. Ele fez comentários em um contexto de descontração e brincadeiras que, posteriormente, foram usados em diversos momentos de sua carreira como sérios. Quando ele fala que transou com uma árvore é claramente uma brincadeira que ele e o Jô estão fazendo, mas em outra entrevista, quando o Jô fala sobre animais, o Serguei já muda a postura e reclama dessa mania de sempre associarem ele a sexo e coisas bizarras, o que é refutado pelo Jô e o Serguei se cala. 

Todas as aparições públicas do artista em que questionavam essa questão da sexualidade, ele falava sobre terem aumentado as coisas, sobre colocarem ele como algo que ele nunca disse ser. Inclusive, todos os vídeos que achei daquela primeira entrevista que ele fala que é um pansexual, têm cortes no começo da sua fala que me deixam em dúvida se ele de fato falou aquilo ou se foi uma escolha editorial fazer aquela abordagem para fazer com que o Serguei virasse alvo de piadas.”

Livia também falou de como a comunidade pansexual recebe Serguei nos dias de hoje:

A visão dos pansexuais sobre o Serguei não era muito boa quando conheci, as pessoas tinham um imaginário terrível sobre a pansexualidade. Conheci diversos pansexuais que tinham medo de pansexuais antes de se entenderem como pans e, quando se aprofundaram no assunto, notaram que era absurdo as alegações que faziam. 

Acho que agora, com mais pessoas falando sobre o assunto, explicando como funcionava a mídia hegemônica e, resgatando essas entrevistas, essa visão sobre o Serguei está mudando. 

Do vilão que criou as críticas mais comuns contra pansexuais ao herói que tentou fazer uma exposição de seus sentimentos de forma descontraída e por diversas vezes foi descontextualizado.”

Serguei foi a pedra fundamental do rock brasileiro, dando ao gênero uma cara nacional bem antes das excepcionais bandas dos anos 1980. Também foi uma figura bastante querida pelos seus colegas de ofício, sobretudo pelos roqueiros.

Foi um ser humano livre dos preconceitos, das amarras e das ilusões sociais que foram criados pra nos aprisionar. Uma pessoa futurista, que adiantou muitos debates e trouxe questões até então inéditas na esfera pública do Brasil.

Criou o seu próprio metaverso, o qual nenhuma tecnologia conseguirá copiar devido aos sofisticados dispositivos internos de subversão de quaisquer ordens e sistemas, sejam eles sociais ou políticos; analógicos ou digitais.

Embora nunca tenha sido um artista panfletário, Serguei teve o mérito de ajudar ora voluntária, ora involuntariamente, a deixar nosso país menos careta e um pouco mais receptivo a sexualidades e identidades de gênero não-hegemônicas.

Viva, Serguei!