A cantora, compositora e multi-instrumentista Cátia de França nos contou algumas das passagens mais emblemáticas de sua exitosa carreira musical numa entrevista imperdível.
Cátia traz em sua bagagem uma história de muitas lutas que jamais podem ficar adormecidas. Ela é mulher, artista, negra, lésbica, nordestina e candomblecista. Carregar essas identidades num país como o nosso é, sem dúvida, um grande desafio.
Nascida Catarina Maria de França Carneiro, Cátia de França iniciou seus estudos de piano aos 6 anos, incentivada pela mãe, Adélia de França, a primeira professora negra da Paraíba, que também exerceu forte influência na formação literária e política dela.
Além do piano, Cátia também estudou violão, flauta, percussão e sanfona.
Entre os anos 1960 e 1970, Cátia de França fez uma excursão pela Europa, divulgando pelo Velho Mundo toda a riqueza do folclore musical brasileiro.
Depois deste período no exterior, Cátia foi aos poucos inserida na cena musical do Brasil, participando do primeiro disco solo de Zé Ramalho com suas inconfundíveis sanfona e percussão.
No ano de 1979, Cátia de França gravaria nos estúdios da Epic/CBS, sob a produção de Zé Ramalho, um dos álbuns mais importantes da história da música brasileira: “20 Palavras Ao Redor do Sol” do qual participaram Sivuca(sanfona e piano elétrico), Bezerra da Silva(berimbau), Dominguinhos(sanfona), Chico Batera(bateria), Lulu Santos(guitarra elétrica), Elba Ramalho e Amelinha(vocais).
A faixa-título foi uma provocação ao poema “Graciliamo Ramos” de João Cabral de Melo Neto, poeta conhecido, entre outros aspectos, pela objetividade e pouca musicalidade com seu trabalho literário. O conceito que Cátia quis utilizar foi justamente a transposição para a canção de um poema “antimusical”.
No álbum seguinte, “Estilhaços”, há outra referência a João Cabral na canção “Não Há Guarda-Chuva” e também a Guimarães Rosa na faixa “Boi Surubim”, inspirada nos aboios dos vaqueiros de Minas Gerais. Esta canção conta com a participação ilustre de Clementina de Jesus nos vocais.
Outro álbum que merece destaque é “Avatar” de 1996, no qual Cátia usa como motes os trabalhos do poeta sul-matogrossense Manoel de Barros em três canções: “Rogaciano”, “Antoninha Me Leva” e “Apuleio”. O disco também conta com a participação nos vocais de Xangai em “Antoninha Me Leva” e de Chico César no clássico “Coito das Araras”. O álbum também conta com o auxílio luxuoso do Quinteto da Paraíba nas cordas da canção “Ponta do Seixas”.
Em 2012, Cátia de França, acompanhada pela Camerata Arte Mulher, lança o álbum “No Bagaço da Cana Um Brasil Adormecido”, cujas canções foram compostas sobre textos de José Lins do Rego.
Cátia lança em 2016, pela Porangareté, o álbum “Hóspede da Natureza”, cuja faixa-título foi inspirada em “Walden”, a autobiografia de Henry Thoreau. Do álbum, destacam-se o flamenco “Lagarto Ao Sol” e o blues “Tramas da Cidade”.
Em 2024, pelo selo Tuim Discos, lançou o álbum “No Rastro da Catarina” com as excelentes faixas “Negritude”, “Academia e Lanchonetes” e “Eu”, esta última feita sobre um poema de Florbela Espanca.
Além de cantora, compositora e multi-instrumentista, Cátia de França também é autora dos cordéis “A Peleja de Lampião Contra a Fibra Ótica” e “Saga de Zumbi”; do infanto-juvenil “Falando da Natureza Naturalmente” e dos livros “Manual de Sobrevivência” e “Cátia de França: A Vida Na Prosa Rimada, a Alma Livre Nos Versos”.
Para nos debruçarmos com mais propriedade sobre a vida e a obra de Cátia de França, Observatório G traz na sequência uma entrevista concedida por ela com exclusividade nesta semana, que pode ser lida na sequência.
Observatório G: Que compositoras e compositores mais influenciaram sua criação e que cantoras mais influenciaram seu canto?
Cátia de França: Os compositores e cantoras foram Jackson do Pandeiro, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Luiz Gonzaga, Johnny Alf, Maysa e Dolores Duran.
Observatório G: O que você mais gostava de escutar quando era criança e adolescente? Teve alguma fase da sua vida que você gostou de algo bem diferente do tipo de música que você canta, tipo Jovem Guarda?
Cátia de França: O que eu ouvi na adolescência? A minha influência musical nessa época foi Beatles, Santana, José Feliciano, Roberto Carlos, a Jovem Guarda, os baianos e os mineiros…
Observatório G: Você disse em algumas ocasiões que aprendeu a tocar acordeon porque seu pai adorava ouvir tango. Como foi esse seu primeiro contato com o acordeon?
Cátia de França: Minha mãe comprou uma sanfona…porque meu pai queria tango. Ele era boêmio e queria que eu aprendesse o instrumento pra poder fazer uma tradução musical melhor do que o ritmo argentino pedia, então, o instrumento seria a sanfona. Eu não tive professor. Mamãe pegou um manual autodidata e me deu. Como eu já estudava desde os 4 anos de idade o piano, a parte do teclado eu sabia…a parte dos baixos é que deu mais trabalho.
Observatório G: Como aconteceu a gravação do álbum “20 Palavras Ao Redor do Sol”? O álbum foi produzido pelo Zé Ramalho…você pode contar um pouco sobre a amizade de vocês?
Cátia de França: Zé Ramalho me convidou pra entrar na banda dele na época do lançamento de “Avohai”. Eu toquei sanfona e percussão. Da convivência, dessa aproximação pré-produção foi que a gente começou a trocar ideias, ele já tava bem posicionado dentro da gravadora, da CBS, então ele propôs fazer a produção do “20 Palavras…” e ele respondeu por tudo. Aconteceu a gravação ali no estúdio da CBS, na Lapa, na Gomes Freire. O procedimento todo fluiu com muita paz e confiança. As bases do disco foram feitas em uma semana. Gravado o disco, o Zé continuou me dando todo um respaldo. Ele me aconselhou a investir na minha carreira-solo e escolheu comigo os músicos da minha banda.
Observatório G: No álbum “Estilhaços” você gravou a canção “Boi Surubim” com a Clementina de Jesus, como foi esse encontro?
Cátia de França: O álbum “Estilhaços” de 1980 teve o apoio do maestro Paulo Machado, arranjador do disco “20 Palavras…” que instantaneamente se engajou a ser o maestro do “Estilhaços”. A participação dele foi primordial, mas uma pessoa que já convivia e fazia a produção de Clementina foi o Hermínio Bello de Carvalho, produtor musical. Ele me conhecia da TV Educativa e criou essa aproximação entre a gente, Clementina e eu. A Clementina, no dia da gravação, no estúdio, foi acompanhada da filha, Olga.
Observatório G: Seu trabalho tem uma forte influência da literatura de autores como João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego e Guimarães Rosa. Você poderia falar um pouco sobre a inspiração que a obra deles gerou pra você compor canções a partir da literatura deles?
Cátia de França: O motivo de buscar e o porquê é devido à minha mãe, que tinha uma biblioteca vasta, a Coelho Lisboa, esse era o nome da biblioteca dela. Eram milhares de livros! Eu convivi com isso desde pequena. Então, o motivo de buscar inspiração nos livros veio de eu querer que a fonte de onde eu retiro as minhas ideias, tenha cada vez mais coerência, alicerce, fundamento, me dando o conforto da fonte verdadeira.
Observatório G: O vocábulo “Kukukaya” que dá nome a uma das suas canções mais conhecidas foi criado por você? Você poderia contar um pouco sobre o que te inspirou a compor esta canção?
Cátia de França: Essa palavra eu retirei de uma revista esotérica pelo ano de 1973, eu cheguei no Rio em 1972. Muitos anos depois, na Paraíba, numa livraria na Visconde de Pelotas, eu encontrei esse livro sobre ciganos e dizia a origem desses que me inspiraram, que eram ciganos da Bulgária. Ali tinha explicações sobre o texto, porque de minha autoria é só “São quatro jogadores sentados na mesa, no jogo”. O resto todinho são quadras que os ciganos mencionam dependendo da situação. Quando eles dizem: “Eu tenho dois olhos e tenho dois pés. Dor dos meus olhos vai pros meus pés, dos pés pra terra e da terra pra morte”. Isso é dito quando eles estão em disputa de liderança. É o Alfa encontrando outro pra ver quem vai agora responder pela tribo inteira. Outra situação é quando tem, por exemplo, a maior declaração de amor, quando no casamento o cigano diz pra cigana: “Onde eu sou chuva, seja água; onde eu sou chama, seja brasa”. Isso é o que eles dizem. Uma outra quadrinha que é entoada numa situação específica é, no caso, quando a mulher está grávida, ela diz: “O ovo é redondo, o ventre redondo é, vem amor, vem com saúde”. A cigana menciona essa quadra.
Observatório G: Suas composições foram regravadas sobretudo por cantoras nordestinas como Elba Ramalho(PB), Amelinha(CE), Marinês(PE), Simone(BA), Khrystal(RN), Wilma Araújo(AL), Socorro Lira(PB)…O que você achou das regravações da sua obra por outras vozes femininas e nordestinas?
Cátia de França: Eu ressalto que o ato de gravar traz o posicionamento cultural de chamar a atenção para aquele nome que o cantor tá abordando. Simone, magistralmente, falou: “Reparação histórica” por ter gravado minha canção. Cada uma dessas cantoras deram a sua contribuição gigantesca ao gravar, abraçar, defender a minha canção porque o meu trabalho traz digitais, credos, tendências e afetos desafiantes.
Observatório G: Qual foi a influência que sua mãe exerceu no seu lado leitora e compositora?
Cátia de França: Foi o tipo de música que mamãe trazia pra dentro da nossa casa, porque você é o que você ouve. Na nossa casa os livros reinavam e a boa música também. Era uma casa estritamente musical.
Observatório G: Quais artistas da nova geração da música brasileira você mais gosta de escutar?
Cátia de França: Eu ouço e admiro Martins, que, inclusive, me convidou pra fazer uma participação no Festival CoMA de Brasília. Ouço também Juliana Linhares, Juzé da Paraíba, Pedro Índio Negro da Paraíba, Alessandra Leão de Pernambuco, nós fizemos shows juntas, eu e Alessandra, várias vezes. Ouço Luana Flores, que também participou do Festival CoMA de Brasília, ela é uma paraibana com uma nova linguagem, uma pessoa corajosa e fantástica...
Que a obra de Cátia de França continue nos inspirando e nos alimentando com os nutrientes que só encontramos no solo fértil da nossa canção popular!
Viva, Cátia de França!