Direito a Deus

A Verdade foi substituída pela pós-verdade?

Um discurso que ganhou força em 2016 no campo político e está frequentemente ligado ao preconceito contra os LGBTI+

Foto: Arte Canva
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A pós-verdade é uma relativização do conceito do que é verdadeiro a partir da concepção que as pessoas têm, e não a partir da comprovação dos fatos.

Segundo o dicionário Oxford, pós-verdade significa ‘algo que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência para definir a opinião pública do que o apelo à emoção ou crenças pessoais’, isto é, vale mais o que se enraizou no pensamento das pessoas do que a busca pela comprovação da veracidade daquilo.

O discurso da pós-verdade possui em seu âmago a intenção de desinformar e, por isso, está frequentemente relacionada com a ideia do discurso de ódio, fenômeno social que fomenta a intolerância, discriminação, estereótipo, preconceito e violência.

Na verdade, a dinâmica do discurso pós-verdade apresenta a convergência entre a intenção de desinformar do emissor e a intenção do receptor de acreditar apenas naquilo que é a crença pessoal.

E por que pós-verdade?

O prefixo “pós” não faz menção aqui a momento posterior ao evento, como por exemplo no termo “pós-guerra”, mas apresenta vínculo com o momento no qual o verdadeiro conceito, mais específico, se tornou irrelevante ou sem importância.

O professor Mário Sérgio Cortella, no vídeo “O que é pós-verdade”, nos ensina que essa expressão não é sinônimo de mentira, pois é algo que faz parte da crença popular. A mentira, por sua vez, é algo que a pessoa prova.

O ponto é que a crença popular é subjetiva e desprovida de comprovação. Fala muito mais do que o indivíduo pensa do que da veracidade dos fatos. Logo, nem tudo o que é crença popular é sinônimo de verdade.  

Recordo-me de que nos anos de 2010 e 2011, antes do Supremo Tribunal Federal decidir pelo reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares, dotadas de direitos como qualquer família heterossexual, a igreja tradicional da qual eu fazia parte pregava o discurso: “Não podemos permitir isso. Os homossexuais vão querer forçar as igrejas a celebrarem seus casamentos. Eles vão invadir as igrejas e nos obrigar a casá-los”.

Aquela fala repercutia com um tom de terrorismo na cabeça das pessoas. No imaginário de quem ouvia aquela pregação passava a imagem da própria Parada LGBTI+ invadindo a igreja, todos cheios de purpurina, muita música, dança, show de drags etc. Enfim. Lembro-me bem de pessoas comentando assustadas com essa possibilidade.

Eu, que ainda não havia “saído do armário”, me questionava como que os gays poderiam obrigar as igrejas a celebrarem seus casamentos se várias igrejas, inclusive aquela, possuíam regras de apenas realiza cerimônias de seus membros batizados?

Um terrorismo infundado. A decisão da Corte Suprema a favor do direito ao reconhecimento das uniões homoafetivas como famílias e a Resolução do Conselho Nacional de Justiça 175/2013 não causaram mudanças no cotidiano das igrejas cristãs no Brasil. Ao contrário, seus líderes seguem com discurso homotransfóbico, se valendo da liberdade de expressão e crença como escudo.

Para além disso, seguem patrocinando a “eleição” de parlamentares cristãos como um modo de terem alguém que possa expressar o preconceito e praticar a discriminação sem a possibilidade de responder pela sua fala como um cidadão comum, haja vista a imunidade parlamentar.

Recordo-me também de que na infância eu ouvia muitos dizerem que se os gays ganhassem direitos, o Brasil viraria uma Sodoma e o castigo de Deus viria sobre o país.

A fala é tão infundada que as pessoas não raciocinam sobre o ato dos sodomitas e qual a lógica de se comparar a conduta deles com as relações homoafetivas.

Os sodomitas objetivavam um estupro coletivo contra dois homens. Ora, um estupro coletivo heterossexual é facilmente distinguido de um relacionamento consensual heterossexual. Por que, então, a mesma lógica não é aplicada aos homossexuais?

Seriam duas medidas para o mesmo fato? Injustiça que chama?

Pois é. Esse é o ponto da pós-verdade, pois vivemos o momento no qual a busca da verdade deixou de ser importante. O que vale é a crença popular, a qual muitas vezes se torna aquilo no qual as pessoas querem acreditar, pois isso diz mais sobre a subjetividade delas.

Nessa linha, a sociedade recebe com simpatia qualquer coisa ruim que se diga sobre os LGBTI+. Do contrário, se a fala for a favor, ela é rapidamente rejeitada. Isto é, não se busca mais averiguar os fatos, o que importa é a ideia preconcebida, ou, em outras palavras, o “pré-conceito”.

O preconceito é um juízo de valor sobre algo ou alguém que se pauta em uma opinião construída sem fundamento, ou seja, sem objetividade.

É por causa dessa opinião meramente subjetiva que quando aparece uma matéria jornalística noticiando que um homem gay denunciou o esposo por agressão, a fala do preconceituoso é: “está vendo. Tinha que ser homossexual. Não poderia dar em outra coisa”. Do contrário, quando o jornal noticia que uma mulher denunciou o seu esposo por agressão, ninguém vira e fala: “tinha que ser um casamento heterossexual!

Desonestidade? Hipocrisia?

É por causa do discurso da pós-verdade também que mesmo a Bíblia de Estudo Palavra-Chave da Casa Publicadora das Assembleias de Deus apresentando a tradução da palavra grega “arsenokoitai” como significando “abusador de”, os religiosos insistem em fazer versões bíblicas traduzindo aquela palavra como “homossexuais” ou “práticas homossexuais”.

Estão nos chamando de abusadores sexuais ou simplesmente o preconceito é tão grande que eles se recusam a reconhecer que pessoas homossexuais constituem relações homoafetivas?

A verdade, consistente no significado da palavra, não importa. O que importa é que a partir do século XXI algumas versões no Brasil passaram a traduzir arsenokoitai como homossexuais e isso se tornou a única verdade aceita pelos conservadores.

Do mesmo modo, não adiante mostrar que escritores do século I relataram que o pecado de Sodoma foi a violação da lei da hospitalidade. Assim como não adianta tentar fazer os conservadores entenderem que o sexo objetivado pelos sodomitas, a despeito de ser um sexo homossexual, era o meio que aqueles homens tinham de humilhar o estrangeiro. Isto é, o sexo era o meio e não a finalidade do ato.

Não é por acaso que quando os gays fazem a leitura da Bíblia, não conseguem se encaixar naquela descrição segundo a qual os sodomitas eram maus e grandes pecadores diante de Deus. Os gays só conseguem olhar para dentro de si e enxergar alguém que só deseja ser feliz, sem causar mal a ninguém.

A verdade é que, por mais que se apresente evidências, não há disposição para o raciocínio ou a reflexão. Vive-se no “modo zumbi”. Ou melhor, eles vivem na pós-verdade e ponto. Se a verdade já passou por eles, não importa.

Esse é o Cristianismo que assistimos hoje. O Cristianismo que prega a verdade, mas vive a pós-verdade. Hipocrisia pura!

Ah, e desonestidade também!