A Bíblia contém os ensinos de Deus, possuindo defensores ferrenhos de sua veracidade e autenticidade. Esse ímpeto em defender as escrituras decorre do que diz os versículos 18 e 19 do Livro de Apocalipse de João:
“Porque eu testifico a todo homem que ouvir as palavras da profecia deste livro: se algum homem lhes acrescentar alguma coisa, Deus lhe acrescentará as pragas que estão escritas neste livro; e, se algum homem retirar alguma das palavras do livro desta profecia, Deus excluirá a sua parte do livro da vida, e da cidade santa, e das coisas que estão escritas neste livro”.
Um primeiro equívoco de muitos que não conhecem as escrituras é interpretar esses versículos como se eles dissessem respeito a toda a Bíblia. Aprendemos a ler as escrituras como se um livro só fossem. Porém, João cita expressamente “o livro desta profecia”, de modo que ele se refere ao Livro de Apocalipse.
A Bíblia Cristã é composta por vários livros, escritos por várias pessoas diferentes, juntados para formarem um conjunto de normativos para os cristãos. É o que se denomina “cânon bíblico”.
Fazendo um resumão bem aportuguesado do que é o cânon bíblico, eu diria assim: os judeus, como não acreditam que Jesus seja o Cristo, mantém para si o que chamamos de Pentateuco (Gênesis, Êxodos, Levítico, Números e Deuteronômio). Com o advento do Cristianismo, a liderança da Igreja Católica se reuniu e resolveu quais livros, além do Pentateuco, fariam parte do seu conjunto de regras (Bíblia Católica). Por sua vez, no século XVI, veio a Reforma Protestante, e os reformista passaram a aceitar apenas 39 livros do Antigo Testamento, dentre os 46 livros aceitos pela igreja católica. Formou-se a Bíblia Protestante, com menos livros.
A partir da reforma protestante, a Bíblia que antes somente podia ser lida pelos padres, foi traduzida para o alemão e depois para outras línguas até tomar as proporções atuais: no ano 2020 a bíblia na íntegra alcançou a marca de tradução em 700 idiomas (cerca de 80% da população mundial).
Porém, a questão não são as traduções bíblicas. O problema são as traduções manipuladas fornecidas pelas diversas versões bíblicas. O leitor já parou para analisar quantas versões bíblicas existem hoje? Observe a lista que eu encontrei na minha pesquisa (podem existir outras que desconheço):
- Almeida Corrigida e Fiel
- Almeida Revista e Corrigida
- Almeida Revista e Atualizada
- Almeida Revisada Imprensa Bíblica
- Almeida Revista e Corrigida 1969
- Nova Almeida Atualizada
- Nova Versão Internacional
- Nova Versão Transformadora
- Bíblia Versão Jerusalém Católica
- Bíblia Versão Jerusalém Protestante
- Bíblia Versão King James 1611
- Bíblia Versão Católica
- Etc… (só no site bibliaonline.com.br são mais de 150 versões bíblicas disponíveis nos diversos idiomas)
Dentre a lista citada, duas versões eu cito como as campeãs em alteração do original das escrituras: Bíblia Nova Versão Internacional e Bíblica Nova Versão Transformadora.
A Bíblia Nova Versão Internacional – NVI é campeã de vendas. Possui a proposta de uma linguagem fácil de entender, atualizada e moderna, com palavras de nosso cotidiano, mais simples, sem perder a vitalidade da mensagem bíblica na sua essência. Ou seja, possui a promessa de ser uma bíblia com linguagem contemporânea, sem perder o sentido original das escrituras.
Se o leitor for procurar bíblia NVI para compra na internet, verá a propaganda dizendo que se trata de uma “leitura de fácil entendimento, agradável e nada cansativa, diferente de algumas outras versões da Bíblia que usam um português com palavras mais antigas e difíceis de entender“.
Por conseguinte, a Bíblia Nova Versão Transformadora – NVT possui a proposta de inovar no quesito tradução, com a aplicação do português atual, retirando conotações arcaicas, entretanto mantendo a fidelidade etimológica do texto bíblico.
Pois bem. Será que essas duas versões guardam mesmo fidelidade em relação ao original das escrituras? Passemos para algumas comparações.
Logo no começo da Bíblia, é possível perceber um erro de tradução que gera muitas interpretações equivocadas.
No original da bíblia, o versículo 27 do Livro de Gênesis diz que Deus criou o homem sua imagem e semelhança; “à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou”.
Muitas versões, incluindo a NVI e a NVT traduziram esse trecho como “homem e mulher os criou”.
E qual o problema disso?
A problemática é que Deus criou macho (“zakhar”) e fêmea (“nqevah”), assim como todos os demais animais, se referindo ao sexo biológico deles. Acredito que a discussão sobre sexo e gênero já era algo do entendimento de Deus desde o gênesis. Nascemos com o sexo biológico. Os gêneros homem (“haadam”) e mulher(“chavah”) são uma construção social. Nascemos com o sexo feminino ou masculino e nos tornamos homens, mulheres ou nenhum dos dois, consoante identidade das pessoas não binárias. Logo, o que Simone de Beauvoir trouxe na obra O Segundo Sexo, na qual ela afirma que ser mulher não é um conceito do campo biológico, já era o pensamento de Deus quando formou o ser humano:
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino” (BEAUVOIR, 1967, p.9).
A despeito de a bíblia trazer os primeiros capítulos de gênesis de forma resumida, dando a impressão de que o ser humano foi criado “homem” e “mulher”, não é possível determinar quanto tempo decorreu entre a formação do “macho” e da “fêmea” e o momento em que passaram a ser considerados “homem” e “mulher”, assim como não se sabe o tempo decorrido entre a criação deles e a colocação deles no Jardim do Éden, assim como não é possível determinar o tempo que eles viveram no Éden até serem expulsos.
O que é possível inferir do relato bíblico é que Deus criou macho e fêmea. Depois, o escritor do gênesis (o entendimento majoritário é de que foi Moisés) relata no capítulo 2:7 que aquele homem, já assim considerado, foi feito do pó da terra. Ou seja, Moisés estava relatando primeiro o que Deus fez, e depois, se referindo a momento posterior, descreve que aquele homem (já não era macho, acabado de “nascer”), foi feito do pó da terra.
As traduções, contudo, trazem “homem” e “mulher”, desconstruindo a verdade de que sexo e gênero são conceitos distintos. A implicação atual disso recai de forma direta sobre os transgêneros.
Note: A religião diz que Deus criou o homem e a mulher. Nisso, eles se negam a aceitar que o bebê nasce com o sexo biológico e vai desenvolvendo a sua identidade de gênero com passar da vida. A partir disso, condenam as pessoas trans. O ensino religioso de que Deus criou “homem” e “mulher” passou a servir de escudo para se disseminar a transfobia.
Outro exemplo de texto bíblico alterado pela tradução se encontra na passagem do Livro de I Samuel 18:1: “a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma”.
A Bíblia Nova Versão Internacional diz que: “surgiu tão grande amizade entre Jônatas e Davi que Jônatas tornou-se o seu melhor amigo”.
Por sua vez, a Nova Versão Transformadora diz que: “formou-se de imediato um forte laço de amizade entre ele e Jônatas, filho do rei, por causa do amor que Jônatas tinha por Davi”.
Observem como as traduções recentes modificam o original bíblico, acrescentando a palavra “amizade” e a expressão “melhor amigo”, com a finalidade de ocultar qualquer possibilidade de um amor romântico homoafetivo vivido pelo Rei Davi.
Aquela pessoa, pouco conhecedora da Bíblia, que adquire uma NVI ou uma NVT, pensa que o original fala em amizade, certo? Ou seja, aprendem de forma errada, a partir da manipulação bíblica.
O fato, contudo, é que Jônatas tirou toda a sua roupa, ficou nu, e fez um pacto com Davi. Este, por sua vez, afirmou que o amor daquele era melhor que o amor das mulheres. Enfim.
Outros textos bíblicos podem ser usados para exemplificar a manipulação nas diversas versões bíblicas. A passagem de I Coríntios 6:9-10 é outro exemplo, assim como a passagem Gênesis 24:67, quando relata o encontro entre Rebeca e Isaque.
Convido o leitor a fazer o teste, acessando o site www.bibliaonline.com.br e testando essas passagens nas diversas versões.
O objetivo desse artigo é levar à seguinte reflexão: que moral tem o cristianismo atual para dizer que a teologia inclusive está distorcendo as escrituras, se sua própria liderança manipula o original do texto bíblico? Quem tem buscado a verdade por meio do original das escrituras?
Ainda, se as escrituras são sagradas, por que elas precisam ser atualizadas aos dias atuais para serem menos cansativas e “chatas” de leitura? O cristianismo está adequando a sociedade às escrituras sagradas ou a Bíblia está sendo adequada à sociedade?
Deixo a reflexão para o leitor.