Eis a razão de eu ter me tornado pesquisadora bíblica: a letra mata. Desde muito jovem, enquanto eu frequentava a igreja tradicional, sempre ouvi que a passagem de Levítico 18:22 condena os gays.
Uma leitura na literalidade, de fato, induz a essa conclusão. No entanto, o leitor não pode esquecer que Jesus mandou examinar as escrituras. O ato de examinar vai muito além de uma simples leitura. Examinar é analisar minuciosamente.
Uma das formas de analisar a Bíblia é pesquisar o que diz o original. O Antigo Testamento foi escrito em Hebraico e Aramaico. Por sua vez, o Novo Testamento foi escrito em Grego Koinè. O que se tem em mãos, na língua portuguesa, é uma tradução, a qual muitas vezes passa longe do significado original da palavra ou expressão.
Existe um ditado italiano que diz “traduttore, traditore”, ou seja, “tradutor, traidor”. É uma expressão utilizada para dizer: “tradução é sempre uma traição do verdadeiro significado do original”.
Não é à toa que quando Paulo ensina acerca da ordem no culto durante a manifestação dos dons espirituais ele diz que “os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas”. Ou seja, o profeta espiritual está sujeito à humanidade do profeta, de modo que o dom pode ser transmitido de forma enviesada. Nem a interpretação de línguas está isenta do “traduttore, traditore”. É sobre isso que Paulo está alertando.
Pois bem. Na análise da passagem do Livro de Levítico 18:22, dois pontos precisam ser observados: um se refere ao original da palavra “deitarás” e o outro se refere ao original da palavra “abominação”.
O livro de levítico foi escrito em hebraico. A palavra em português “deitarás” é traduzida de duas palavras habraicas: tishekav e mishekevey.
A Bíblia de Estudo Palavra-Chave Hebraico-Grego da Casa Publicadora da Assembleia de Deus apresenta apenas o significado de tishekav. A tradução de mishekevey aparece logo abaixo no dicionário, mas não vinculada à passagem de levítico. Ou seja, a CPAD traduz como se uma palavra apenas constasse do original das escrituras.
No entanto, ao pesquisar a passagem no site Hebraico.Pro, é possível perceber as duas palavras hebraicas, sendo que tishekav e mishekevey apresentam alguns significados em comum, por exemplo, “deitar”, “copular” ou “ter relações sexuais”.
Apesar disso, mishekevey apresenta um outro significado distinto, que é “ejacular sêmen”.
Desse modo, entendo que a tradução mais fiel dessa passagem seria: “com o homem não terás relação sexual, ejaculando sêmen, como se fosse em mulher. É abominação”.
Note que se a passagem fosse traduzida dessa maneira, transmitiria muito mais a ideia de um sexo apenas, situação distinta de quando as duas expressões hebraicas são traduzidas simplesmente como “deitar”, o que induz à equivocada interpretação de ato sexual dentro de um relacionamento. O verbo “deitar” lembra cama, que lembra aconchego. Ainda que inconscientemente essa tradução conduz a uma interpretação equivocada e, por isso, é erroneamente vinculada às relações homoafetivas.
Por sua vez, a palavra “abominação” vem do hebraico toevah, que significa “abominação, especialmente idolatria”, conforme nos ensina a Bíblia de Estudo Palavra-Chave da CPAD.
Quando o texto no original traz a palavra toevah, ele está se referindo a abominação de ordem ritualística, idolatria cultual, realizada em cultos aos deuses canaanitas, como Moloque e Astarte, por exemplo.
Se o ouvinte pesquisar, vai descobrir que no culto à deusa Astarte ou Astarote, famílias inteiras faziam sexo entre si como adoração àquela divindade, e é exatamente o que o texto de levítico 18 condena desde os primeiros versículos. Do mesmo modo, havia o sexo homogenital em adoração a essa divindade.
E é muito interessante como as peças começam a se encaixar porque a passagem inicia com Deus reafirmando que Ele é o Senhor. Nos primeiros versículos Deus enfatiza: “Eu sou o Senhor, vosso Deus”.
Mais interessante ainda é quando o versículo 6 diz “nenhum homem se chegará a qualquer parenta da sua carne para descobrir a sua nudez. Eu sou o Senhor”.
Por que Deus teve que enfatizar que Ele é o Senhor ao dizer que nenhum homem terá relações sexuais com qualquer parenta da sua carne?
Exatamente porque no culto à deusa Astarte as famílias faziam sexo entre si. Por mais que isso pareça bizarro, o fato é que a fé cega as pessoas e o ato passa a não dizer respeito ao gosto do fiel, mas sim, àquilo que a divindade está requerendo.
Logo, é como se Deus estivesse alertando: “vocês não vão praticar esse sexo pagão, pois Eu sou o Senhor”.
Portanto, o que o texto de levítico 18:22 condena é o sexo ritualístico e não um sexo dentro de um relacionamento.
Inclusive, o título “Casamentos ilícitos” é totalmente desprovido de lógica, pois não se trata de matrimônio, mas de sexo. Não um sexo em si, feito por prazer carnal, desejo ou atração. Mas um sexo que era utilizado como meio para se alcançar a finalidade real do ato: a idolatria. Eis a razão de levítico 20:13 dizer que o homem que se deitasse com outro homem seria réu de morte. A idolatria dos povos pagãos sempre foi abominável aos olhos de Deus.
Reflita: uma coisa é um sexo dentro de um relacionamento. Coisa distinta é o sexo como adoração a um deus. Do mesmo modo, uma coisa é uma comida ingerida para fins nutricionais. Outra, é uma comida ingerida como forma de adoração a um deus.
Por isso, a incorreta tradução das palavras tichekav e mishekevey como unicamente “deitarás”, assim como o desconhecimento do significado da palavra toevah, traduzida como “abominação”, levam ao equivocado ensino de que o texto condena relações homoafetivas.
É por causa disso, inclusive, que Jesus manda examinar as escrituras.
De fato, a letra mata, e já matou a vida espiritual de milhares de LGBTQIAP+, que acreditaram nessa condenação.
O Espírito, contudo, que trabalha em prol daqueles que herdarão o Reino de Deus, que conhece os corações, e que inspira as escrituras, vem e conduz à vida.
Como eu sempre digo: ainda bem que O Reino é de Deus, e não das igrejas!!!