Se por um lado o cristianismo, na sua ala conservadora, se nega a aceitar que a Bíblia não condena as pessoas LGBTQIAP+, por outro, falar da possibilidade de haver um romance gay sem qualquer reprovação nas escrituras se torna algo quase herético.
Mas, vamos lá. A Bíblia relata a história de Davi e a sua trajetória desde o momento em que foi ungido pelo profeta Samuel até aquele no qual efetivamente ocupou o trono como rei.
O I Livro de Samuel descreve a ascensão e queda do rei Saul, pai de Jônatas.
O enredo que envolve Davi e Jônatas tem seu início logo após a famosa passagem em que Davi vence o gigante Golias. O livro nos conta que o rei Saul questionou quem seria aquele jovem que havia enfrentado Golias. Após a vitória, Davi é conduzido à presença do rei. A Bíblia diz que acabando Davi de falar com Saul, “a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma”.
Pois bem. Antes de prosseguir nesse texto, convido o leitor à seguinte reflexão: caso a Bíblia dissesse que a alma de Jônatas se ligou a alma de Ana, e Jônatas a amou como à sua própria alma, provavelmente ninguém teria dúvida de que estava rolando um romance, certo?
Repare como essa reflexão é necessária.
Na passagem descrita no livro de Gênesis, capítulo 34, a bíblia nos conta acerca de Diná, filha de Jacó. As escrituras relatam que um príncipe chamado Siquém, quando a viu, tomou-a, deitou-se com ela, e “apegou-se a sua alma com Diná, filha de Jacó, e amou a moça, e falou afetuosamente à moça”.
Não há dúvidas de que se trata de um amor romântico, certo? Pois bem.
O capítulo 18 do I Livro de Samuel relata que Saul requereu a presença permanente de Davi no palácio, não o deixando retornar para casa. Nisso, Jônatas e Davi fazem uma aliança e o relato nos diz que “Jônatas o amava como à sua própria alma”.
Segundo o Dicionário Hebraico de Strong, utilizado pela Bíblia de Estudo Palavra-Chave da CPAD, a palavra aliança vem do hebraico “berith”, cujo significado, dentre outros, pode ser “pacto de casamento”.
Nesse cenário, o versículo 4 do capítulo 18 conta que Jônatas se despojou de sua capa que trazia sobre si e a deu a Davi, como também as suas vestes, até a sua espada, e o seu arco e o seu cinto.
A palavra traduzida como “despojou” é “hitpashet”, cujo significado é “despir-se”.
Inclusive, no dicionário da língua portuguesa a palavra “despojar” é traduzida como “desnudar”, ou seja, ficar nu.
Logo, Jônatas ficou nu perante o homem que a sua alma amava. Imagine se o relato fosse que Jônatas ficou nu perante Ana. Alguém teria dúvida de que teve um “rala e rola”? Eu não teria.
Pois bem. A história se desenrola e Davi começa a perceber de forma evidente que Saul havia mudado e estava disposto a matá-lo. De fato, Saul já sabia que o trono não seria mais seu e que Davi o assumiria.
Nesse intervalo, Saul arruma um jeito de comprometer Davi, casando-o com sua filha Mical, ao tomar conhecimento de que ela o amava. A palavra em nenhum momento diz que Davi amava Mical. Mas o casamento real era na verdade uma armadilha para tentar matar Davi, o que não deu certo.
Após frustradas as várias tentativas de matá-lo, a Bíblia diz que Saul passou a ser inimigo de Davi.
Em diálogo posterior entre Davi e Jônatas, ambos fizeram um propósito para averiguar se realmente Saul desejava matar o futuro rei. Nisso, durante um jantar com Saul, Jônatas defende Davi e a ira do rei vem à tona.
Nesse trecho se encontra a outra chave que destranca esse romance. O rei diz a Jônatas: “Filho da perversa em rebeldia; não sei eu que tens elegido o filho de Jessé, para vergonha tua e para vergonha da nudez de tua mãe?”.
O autor Daniel A. Helminiak faz uma análise bem interessante acerca dessa passagem:
“A raiva do rei Saul expressa contra Jônatas em I Samuel 20:30 também é reveladora: “Filho de prostituta, disse-lhe, não sei eu porventura que és amigo do filho de Isaí (isto é, Davi) o que é uma vergonha para ti e para tua mãe?” Saul insulta Jônatas de duas maneiras. Primeiro, ao acusar sua mãe de ser “prostituta”, o ultrajado e enraivecido Saul chama seu próprio filho Jônatas de bastardo. E em segundo lugar, Saul ridiculariza o relacionamento de Jônatas e Davi. A versão em hebraico deste versículo é ambígua e, segundo a tradução grega do Septuagint, também poderia significar “Então não sei que você é um companheiro íntimo do filho de Isaí?” Portanto, dado que as palavras “vergonha” e “nudez” são formas bíblicas comuns de se referir ao sexo, seguramente a insinuação aqui é de caráter sexual. Aparentemente, Saul está demonstrando desprezo pela ligação sexual entre Jônatas e Davi, um assunto que facilmente teria chegado ao conhecimento de Saul e de sua corte. Assim, em termos modernos, o segundo insulto de Saul é chamar seu filho de bicha. O que está em jogo, em toda essa intriga é, claro, a rivalidade na competição pelo trono de Israel”.
Esse entendimento é confirmado pelo Dicionário Hebraico Strongs, segundo o qual, um dos significados para a palavra hebraica “erwäh”, traduzida como “nudez” é “eufemismo comum para relações sexuais”.
Após o jantar com seu pai, Jônatas vai se encontrar com Davi e eles se despedem, porque Jônatas havia entendido que o intento de Saul era matar Davi. A Bíblia relata que eles se beijaram e choraram (I Samuel 20:41)
Alguns relatos depois, durante uma guerra, Saul e Jônatas são mortos. Quando toma conhecimento da morte de Jônatas, Davi, angustiado, diz que o amor daquele príncipe era mais maravilhoso do que o amor das mulheres (2 Samuel 1:26).
Ou seja, Jônatas amava Davi como a sua alma e faz um pacto nu; Davi e Jônatas choram e se beijam na despedida; Davi declara que o amor de Jônatas era mais maravilhoso do que o amor das mulheres; e alguém ainda tem dúvida de que rolou muito mais do que uma amizade?
Vamos lá trocar os papéis: Jônatas amava Ana como à sua alma e faz um pacto nu com ela; Ana e Jônatas choram e se beijam na despedida; Ana, fica sabendo da morte de Jônatas, e declara que o amor dele é mais precioso do que o amor de qualquer outro homem.
Haveria alguma dúvida acerca do romance entre Jônatas e Ana? É óbvio que não.
O fato é que Davi era um homem segundo o coração de Deus, escolhido a dedo por Deus para ser rei de Israel, e que amava outro homem. E nada disso desmereceu o rei agradável a Deus que ele foi. Não foi um homem perfeito, mas tinha o coração sincera aos olhos de Deus, fazendo parte, inclusive, da genealogia de Jesus.
Apesar de todo esse contexto, os religiosos sustentam a afirmativa de que tudo não passou de uma amizade. Alteraram a Bíblia só para dizer isso. A Bíblia Nova Versão Internacional diz que depois da conversa entre Davi e Saul, após aquele vencer o Golias, “surgiu tão grande amizade entre Jônatas e Davi que Jônatas tornou-se o seu melhor amigo”.
Ou seja, alteraram o original da Bíblia conforme o preconceito de quem a traduziu, somente para que as pessoas sejam induzidas a acreditar que seria uma simples amizade.
É como diz a Bíblia: “quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.
Todo mundo tem ouvido, mas nem todos têm ouvido capaz de ouvir. Não é à toa que a sabedoria de Deus é loucura para os homens.