Direito a Deus

Meu Servo ou Meu Rapaz?

A cura do servo do centurião, que era mais do que um simples escravo

Foto: Arte Canva
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O capítulo 7 do Evangelho Segundo Lucas relata que após o Sermão da Montanha, Jesus entra na cidade de Cafarnaum.

A passagem cita que o servo de um certo centurião, muito estimado pelo seu senhor, estava doente e moribundo.

Centurião era o nome dado a um capitão que comandava um grupo de cem homens.

Segundo fontes históricas, havia em Cafarnaum um destacamento que tomava conta do porto e da entrada comercial, comandado por um centurião a serviço do tetrarca Herodes Antipas.

A passagem sobre a cura do servo do centurião é descrita tanto por Mateus 8:5-13, quanto por Lucas 7:1-10. As narrações apresentam algumas diferenças:

1) No Evangelho segundo Mateus o relato é feito como se o centurião tivesse ido pessoalmente até Jesus. Já no Evangelho segundo Lucas, diz que o centurião “enviou-lhe alguns anciãos dos judeus, pedindo-se que viesse curar o seu servo”.

2) O Evangelho segundo Lucas relata que esses anciãos intercederam pelo centurião, falando que esse era digno de que sua súplica fosse atendida. Mateus não faz esse relato;

3) O Evangelho segundo Mateus cita que Jesus trouxe uma reflexão final, não citada em Lucas. Segundo Mateus, Jesus disse: “Em verdade vos digo que muitos virão do oriente e do ocidente, e assentar-se-ão à mesa com Abraão, e Isaque, e Jacó, no reino dos céus; e os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá prato e ranger de dentes”;

4) O Evangelho segundo Lucas diz que o servo do centurião era muito estimado pelo seu senhor. Mateus não faz essa narrativa.

Pois bem. As diferenças nos relatos não prejudicam em nada o ensino maravilhoso que este texto apresenta.

O sentimento de alta estima entre o senhor e o seu servo era um fato muito raro na Roma Antiga, pois geralmente os escravos eram tratados com tal desprezo e rigor, que frequentemente chegava-se à crueldade. Demonstrar consideração por um servo ou escravo era incomum, ainda mais partindo de um cidadão romano de classe alta.

Quando o Evangelho de Lucas diz que o “servo” do centurião estava doente, utiliza a palavra grega “doulos”, a qual era um termo utilizado para se referir aos escravos em geral.

No entanto, quando o Evangelho de Mateus cita que o próprio centurião foi falar com Jesus, diz que ele pediu a cura para o seu “criado”. Esse termo vem do original grego “pais”, o qual significa “rapaz”, “jovem”.

É interessante como a Bíblia de Estudo Palavra-Chave da CPAD traduz essas duas palavras quando faz uma comparação aos servos de Deus. Ao se referir ao termo grego “doulos”, o dicionário diz que se refere ao “servo de Deus: ou a agentes enviados por parte de Deus”.

Por outro lado, quando se refere ao termo grego “pais”, a Bíblia de Estudo CPAD traduz como “servo de Deus, chamado e amado de Deus”.

Ou seja, a própria Bíblia de Estudo Palavra-Chave da Assembleia de Deus traz um significado mais sentimental para a palavra “pais”, e esse é um dos segredos dessa passagem.

Quando o centurião se refere ao servo doente, ele usa a expressão “pais”. Porém, no versículo 8, o próprio centurião se refere aos seus demais escravos como “doulos”: “digo a meu servo faze isto e ele o faz”. O termo “servo” aqui é “doulos” no original.

Logo, aquele servo doente era diferenciado dos demais.

Daniel Helminiak, na obra O que a Bíblia realmente diz sobre a Homossexualidade, faz a seguinte análise acerca desse trecho:

O que podemos concluir de tudo isso? Primeiro, fica claro que o servo era mesmo um servo (doulos) e não o filho do centurião, e que o servo era jovem (pais). Em segundo lugar, sabemos que o jovem era ‘entimos’ pelo centurião. Isto poderia significar várias coisas. Inicialmente, talvez o centurião tivesse pagado um alto preço por este escravo e, portanto, não quisesse perdê-lo. Mas esta é uma leitura improvável. O centurião era rico e poderia facilmente voltar ao mercado para comprar outro escravo. Além disso, o servo poderia ter valor se fosse alguém com muita experiência e habilidade, representando um papel chave na administração da casa. Mas isto também é pouco provável, já que ele era um jovem. Finalmente, ‘entimos’ poderia sugerir uma ligação emocional. Este é o significado mais provável neste caso.”

Nessa linha, um segundo ponto dessa passagem é o significado original da expressão “muito estimava”, descrita no Evangelho de Lucas. O relato diz que o servo era alguém que o centurião muito estimava.

A expressão ser estimado é a palavra no grego koinè “entimos”, a qual significa “precioso”, “querido”, “muito honrado”.

Logo, Lucas descreve que aquele servo era “doulos entimos”, ou seja, um servo querido. Não era qualquer servo. E a fala do centurião nos confirma isso, visto que ao se referir àquele servo enfermo ele usa o termo “pais”

A passagem diz que ele falou pra Jesus: “dize, porém, uma palavra, e o meu rapaz será curado”.  Em algumas traduções diz criado. Porém, a palavra no grego koinè é “pais, a qual significa “jovem”. Mateus 8:6 traz a mesma palavra.

Daniel Helminiak ainda explica as duas palavras utilizadas pelo centurião para se referir ao seu servo:

“O centurião utiliza duas palavras gregas diferentes quando fala de seus servos. Ele refere-se ao que está doente como “meu menino”, ‘pais’. Esta palavra significa menino, mas também podia significar servo ou até mesmo filho. Ela relacionava um jovem a um adulto exclusivamente por meio do afeto. Trata-se de uma palavra que provavelmente seria empregada em referência a um escravo efebo, e há provas não bíblicas de que ‘pais’ às vezes significava o amante masculino. Em contrapartida, o centurião chama os demais escravos de ‘doulos’.

Desse modo, entende-se que Jesus estava diante de um senhor que clamava pelo seu servo querido, estimado, com o qual ele provavelmente tinha um relacionamento que ia além da escravidão. Apenas o servo, escravo, muito estimado, morava no mesmo teto do seu senhor. Quando o centurião diz que Jesus não é digno de entrar em sua casa, ele estava dizendo que o servo estava debaixo do seu teto. Tratava-se de um escravo especial.

Já ouvi pregações de pastores que são favoráveis à salvação das pessoas LGBTQIAP+, porém contrários ao entendimento de que havia um contexto homossexual entre o centurião e o seu servo. Mas o fato é que, naquele tempo em Roma era comum alguns escravos serem servos sexuais de seus senhores. Isso era culturalmente aceito. No entanto, o ponto diferencial nessa passagem é o fato de que aquele servo era muito querido e estimado.

Conforme bem diz Helminiak, se fosse qualquer servo aquele centurião poderia simplesmente adquirir outro. O centurião era um homem rico, construiu sinagoga, poderia simplesmente trocar de escravo. Mas não! Era um servo especial.

Tanto que, mesmo sendo um centurião Romano, ele foi procurar um Rabi Judeu. E o contexto social e cultural não pode ser ignorado. Roma era o império dominante e os judeus eram dominados. Não havia mérito no ato de aquele centurião procurar Jesus. Porém, o seu apreço por aquele servo era tão grande, que ele apenas queria a sua cura.

A verdade é que Jesus estava diante de um homem que amava um escravo e com ele tinha uma relação especial, além da escravidão. Aquele servo era insubstituível. Esse apreço todo por um escravo não era comum na Roma Antiga. E Jesus sabia disso! Jesus vivia naquela sociedade romana.

Reflita comigo! O pecado de Sodoma e Gomorra não era (segundo defendem os conservadores) o ato sexual entre homens? Ou seja, a homossexualidade?

Ora, Jesus mesmo não citou Sodoma e Gomorra em algumas passagens?

Por que, então, Jesus não condenou aquele Centurião? Jesus poderia ter dito: “vou curar o teu servo, mas vais e não peques mais”.

Ao contrário disso, Jesus se maravilhou de sua fé, dizendo: “digo-vos que nem ainda em Israel tenho achado tanta fé”.

Lembre-se de que, quando Jesus quis repreender, ele repreendeu, a exemplo de Nicodemos, um dos principais dos Judeus (Evangelho Segundo João, capítulo 3). Do mesmo modo, quando Jesus quis instigar para ouvir da pessoa o que estava oculto, ele também o fez, a exemplo da mulher samaritana (Evangelho Segundo João, capítulo 4).

Logo, se o relacionamento afetivo entre aquele senhor e seu servo fosse uma questão reprovável para Jesus, por que Ele simplesmente elogiou a fé do centurião e ainda curou o servo, sem pronunciar qualquer fala condenatória?

Quando o centurião diz “cura o meu ‘pais’”, ele já estava dizendo para Jesus quem era aquele criado, e o que ele representava.

O professor Alexandre cita Paul Veyne, historiador especialista em Roma Antiga, o qual escreveu: “O amor dito grego poderia, portanto, ser chamado de romano. O efebo (adolescente do sexo masculino) livre de nascença, objeto de amor dos gregos, era (às vezes) substituído em Roma pelo escravo, que servia de amante”. (Sexo e Poder em Roma, p. 241)

O que o autor quer dizer é que aquela relação vivida na Grécia entre um homem mais velho e um rapaz mais novo, foi incorporada em Roma na vivência entre os senhores e seus escravos.

Com certeza Jesus sabia daquela cultura e não se sentiu incomodado por aquela situação, nem a tomou como um pecado abominável. Do mesmo modo, Mateus e Lucas nem mesmo questionaram o fato do servo e do centurião viverem uma relação de afeto.

Essa é mais uma demonstração que as relações homossexuais nunca foram uma questão reprovável aos olhos de Deus. O que sempre foi reprovável foi o sexo como meio para se atingir um objetivo abominável, seja a humilhação por meio do estupro, seja a idolatria.

Ainda que se conteste o fato daquele servo ter o dever de “atender sexualmente” o seu senhor, o fato é que havia um sentimento naquela relação. Se fosse um escravo sexual qualquer, o centurião romano não teria se colocado na situação de procurar a cura por meio de um judeu. Ele simplesmente substituiria.

Interessante ainda notar que, segundo descreve Lucas, o centurião enviou anciãos, o que nos dá a ideia de que ele não quis deixar o seu servo sozinho. Isso demonstra mais ainda o quanto aquele “pais” era especial.

Assim, ao que nos indica o contexto histórico, cultural e linguístico, Jesus se deparou sim com um relacionamento homossexual durante o seu ministério.

Entretanto, para o descontentamento dos conservadores, Jesus tratou como qualquer relacionamento. Ponto final.

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