Depois de ter aprovado no dia 10 deste mês, por 12 votos a 5, o Projeto de Lei nº 5167/2009, que proíbe a igualdade de direitos entre casais de pessoas do mesmo sexo e casais de pessoas heterossexuais, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados tem dado mostras de que não deseja parar por aí. O ódio contra a população LGBTQIA+ é tamanha que o presidente da Comissão, o Deputado Federal Fernando Rodolfo, do Partido Liberal (o mesmo do ex-presidente Jair Bolsonaro), já chegou ao ponto de se ausentar do enterro do seu próprio pai para comandar a votação do projeto de lei que discrimina casais do mesmo sexo.
Em recente entrevista concedida à imprensa, o Deputado Fernando Rodolfo antecipou que as próximas pautas tratadas pela Comissão de Previdência serão: poliamor, aborto e terapias de “reversão de sexualidade” (leia-se, “cura gay” – coisa que, sabe-se, não existe, já que não há cura para o que não é doença). A Comissão de Previdência tem se notabilizado, dizem, como uma das mais produtivas da Câmara dos Deputados, mas não à toa. A partir de uma confortável maioria, ela tem aprovado todo tipo de retrocesso no tocante à agenda de costumes a fim de mobilizar bases conservadora e reacionária, como estratégia para distrair a parcela do eleitorado que está frustrada diante dos reiterados tropeços de Jair Bolsonaro e companhia. Essa turma, que não conseguiu se reeleger em outubro de 2022 e promoveu um golpe de Estado frustrado em 2023, desde então, tem ocupado as manchetes dos jornais, na qualidade de réus, seja pelos inquéritos que ainda tramitam no STF, seja pela CPMI que funcionou no Congresso Nacional e terminou com um relatório de mais de mil páginas, em que foi pedido o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e alguns dos seus ex-ministros por crimes como o de golpe de estado.
Assim, ao pautar debates como a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, um direito que já foi garantido pelo Supremo Tribunal Federal em 2011 quando julgou a ADPF nº 132, os bolsonaristas estão, ao mesmo tempo, fazendo com que a sociedade civil organizada tenha que despender sua energia lutando para evitar que retrocessos ocorram, quando, na verdade, elas gostaríam e deveriam despender sua energia pautando o debate sobre outros temas que são urgentes e ainda não foram garantidos pelo Legislativo ou pelo Judiciário. Por exemplo, a questão do uso do banheiro por pessoas trans. Este tema é tratado pelo STF por meio do Recurso Extraordinário nº 845.779 e começou a ser julgado em novembro de 2015, com votos favoráveis dos ministros Edson Fachin e Roberto Barroso, mas foi objeto de pedido de vista (mais tempo para análise) do ministro Luiz Fux. Desde então, o caso não foi mais retomado. Enquanto isso, parlamentares aprovam leis em âmbito municipal e estadual que proíbem pessoas transexuais de usarem o banheiro de acordo com sua identidade de gênero. Serve de exemplo o Projeto de Lei Municipal nº 400/2023 de Belo Horizonte, que foi aprovado pela Câmara Municipal e aguarda a sanção do Prefeito. De acordo com ele, instituições religiosas, eventos e escolas confessionais têm o direito de discriminar pessoas trans no uso do banheiro. Problemas sociais graves, como a evasão escolar de pessoas trans e seu baixíssimo índice de empregabilidade formal, são escanteados em detrimento de populismo legislativo.
De volta à Comissão de Previdência da Câmara dos Deputados, nesta semana, seu presidente, o Deputado Fernando Rodolfo (PL-PE), afirmou que poderia pautar até o fim do ano um dos Projeto de Lei que permite as terapias de “reversão de sexualidade e de identidade de gênero”. A manipulação do tema é tão panfletária que o Projeto de Lei nº 4931/2016, proposto pelo Deputado Ezequiel Teixeira (PTN-RJ), e que tratava do tema na legislatura passada, acabou arquivado, pois não foi aprovado em nenhuma comissão. Além dele, existem os Projetos de Decreto Legislativo nº 539/2016 e 181/2023, ambos do Pastor Eurico (PL-PE) que revogam a Resolução nº 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia – CFP, a qual proíbe tais práticas terapêuticas.
Aqui, novamente vê-se como parlamentares bolsonaristas instrumentalizam a cidadania da comunidade LGBTQIA+ para se unificarem contra uma pauta comum, um inimigo comum, qual seja, o avanço de direitos de uma das franjas mais frágeis da nossa democracia: lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queers, intersexos, assexuais, não binários, todos aqueles que, até muito recentemente, estavam à margem do Estado por meio da proteção não apenas formal, mas substantiva pelo direito. Sabe-se que nossa comunidade acaba deixada de lado: pela direita, é considerada abjeta; pela esquerda, é atraída quando conveniente; depois, é largada no caminho, como fez Dilma em 2011, ao dizer que seu governo não faria “propaganda de opção sexual”.
A questão das terapias de “reversão de sexualidade e de identidade de gênero” não pode e não deve ser capturada pela narrativa bolsonarista, pois, além de ser uma questão de respeito ao pluralismo democrático, da diversidade de orientações sexuais e de identidades de gênero, se trata também de uma questão técnica, da psicologia. Quando o Conselho Federal de Psicologia editou a Resolução nº 1/1999, que proíbe quaisquer práticas que tendam à “patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”, ele partiu do entendimento de que, deixando a homossexualidade de ser considerada doença pela Organização Mundial da Saúde em 1990, não fazia mais sentido buscar sua cura. Pode-se até mesmo tipificar as práticas de “redesignação sexual” no tipo penal de Curandeirismo, previsto no artigo 283 do Código Penal, que prevê penas de reclusão de 3 a 12 meses.
Inclusive, a questão da “cura gay” já foi judicializada. Em 2019, uma associação de psicólogos ingressou com uma ação no Judiciário, pedindo a revogação da normativa do CFP. O juiz responsável pelo caso concedeu o pedido e o Conselho Federal de Psicologia recorreu ao STF, por meio da Rcl nº 31.818-DF. Na oportunidade, o Tribunal derrubou a decisão de primeiro grau por entender que houve usurpação da competência do STF por parte do juiz de Brasília. Se é verdade que o Judiciário não se manifestou a respeito do mérito da normativa do Conselho Federal de Psicologia, no sentido de confirmar a norma, também é verdade que ela não foi invalidada.
A propósito deste debate, neste mês foi registrada a morte da influenciadora digital lésbica Karol Eller, 36 anos. Seu corpo foi encontrado com sinais que indicavam a prática de suicídio, um mês após ela ter declarado a renúncia de sua identidade de mulher lésbica para “viver em Cristo”. Antes dessa triste ocorrência, Karol Eller teria participado de retiro espiritual em Minas Gerais, no qual fora incentivada a “renunciar” à sua orientação sexual. Há o registro de manifestações suas no sentido de que “Ele [Deus] me ama como eu estava, mas ele não quer as minhas práticas.” – é um discurso muito semelhante ao da patologização da homossexualidade, porém com uma roupagem religiosa. O falecimento de Karol Eller motivou a comunidade LGBTQIA+ a denunciar, nas redes sociais, práticas de tentativa de “reversão de sexualidade e de identidade de gênero” e seus graves danos sobre a integridade psíquica das suas vítimas. A Deputada Federal Erika Hilton (PSOL-SP) propôs o Projeto de Lei nº 5034/2023, que busca equiparar tais práticas ao crime de tortura, que prevê penas de 2 a 8 anos. Note-se que, neste caso, o tempo de reclusão é de 2 a 8 vezes maior do que o tempo da pena máxima do crime de curandeirismo.
É interessante perceber que existe todo um debate no direito penal a respeito das diferentes concepções a respeito dele: há quem acredite que ele deve ser usado como ultima ratio (último recurso) para resolver os problemas da sociedade, outras acreditam que ele pode e deve ser usado de modo simbólico, para que o criminoso pense, antes de cometer o crime, no tamanho da pena a que está sujeito. Há, ainda, críticas a respeito do fato de que no plano das ideias as coisas funcionam bem, mas, na prática, nem tanto, isto é, ao criminalizar demais as condutas como forma de resolver os problemas sociais, quem sempre acaba pagando o pato, são sempre os mais fracos: pessoas sem dinheiro para pagar por bons advogados, como pessoas pobres, periféricas e pretas. Debates com este nível de profundidade são essenciais antes da aprovação de propostas de alta relevância social, como o Projeto de Lei nº 5034/2023, que equipara as terapias de “reversão da sexualidade e da identidade de gênero” ao crime de tortura. São projetos que visam proteger nossa comunidade, garantir direitos e a nossa cidadania efetiva. No entanto, estamos tão cansados de precisar nos defendermos de constantes ataques a direitos já garantidos em Lei, que não conseguimos avançar. Estamos presos a um presente que remonta não ao passado recente, pois há 5, 10, 15 anos estávamos avançando em matéria de direitos – do direito ao casamento à criminalização da homotransfobia. Viajamos no tempo e estamos presos a um passado que tem um ar de março de 1964, em que centenas de milhares de famílias não sentiam pudores de saírem às ruas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade para defender um modelo reacionário de sociedade.
Está na hora de, enquanto comunidade LGBTQIA+, enfrentar esse passado, desmascarar fantasmas e mobilizar nossos aliados. Não haverá avanços em matéria de direitos, enquanto mantivermos uma posição defensiva. Precisamos apontar para as inconsistências do discurso conservador, que impõe um modelo único de vida, a uma sociedade que se pressupõe plural. Assim, acredito, podemos nos desvencilhar da cortina de fumaça do populismo legislativo bolsonarista para nos afirmarmos como sujeitos político dos nossos destinos.