Pare e pense

Destrans, malícia e ciência

Notícias sobre pessoas transgêneras que retornam aos seus gêneros originais são usadas para cancelar a transgeneridade

Destrans, malícia e ciência

Uma pessoa destransicionar é ótima manchete para determinados meios de comunicação. Para seus leitores, é um chamariz para um assunto quente, palpitante, da hora.

É um momento em que a transfobia pode se materializar sem ser óbvia. A repulsa ao gênero diferente daquele ditado pela cisnormatividade tem oportunidade de se expressar travestido de matéria jornalística de cunho informativo.

Pesquise na internet “transgêneros que se arrependeram”. Investiguei no momento de redação deste texto e o google me devolveu aproximadamente 11.700 resultados. Os textos na primeira página:

  • ‘Destransição’ aquece debate sobre mudança de gênero
  • ‘Como volto a ser a Debbie que eu era?’- BBC News Brasil
  • Robert se arrependeu da cirurgia de mudança de sexo
  • Transição de gênero não traz os benefícios prometidos para a saúde mental diz pesquisa
  • Adolescente submetido à mudança de sexo se arrepende
  • Confusos, adolescentes querem ser trans para fugir do padrão
  • Ex-transgêneros falam sobre seus arrependimentos em documentário

Os vídeos disponíveis na primeira página:

  • Domingo Espetacular conta o drama de quem se arrependeu
  • Destransição – essa youtuber se “arrependeu de ser trans”
  • Robert se arrependeu da cirurgia de mudança de sexo…

Os títulos dos textos, sete no total, usam o verbo arrepender em três; um sugere arrependimento sem utilizar o termo; outro diz que transcionar não cumpre a promessa de melhorar a saúde mental; outro que ser trans é comportamento de adolescente rebelde. Apenas um tem aparência de neutralidade, informando que há um debate vivo sobre a questão.

Os títulos dos vídeos usam sempre o arrependimento como tema central.

Entre os dez atalhos que apareceram na minha tela na busca, apenas um, o primeiro, é explicitamente de caráter informativo. Um outro levanta uma questão pertinente. Qual educação os 80% restantes prometem trazer?

Se transfobia for compreendida como o ódio, repúdio ou medo de contato com pessoas transgêneras, que leva a incapacidade de admitir a existência delas, apresentando-as como pessoas moralmente rebaixadas, os 8 atalhos restantes se encaixam na definição.

Desejo de desfazer a transição existe? Sim.

Desejo de desfazer a transição é frequente? Não.

Por que pessoas desejam destransicionar? A literatura médica levanta algumas pistas, que não aparecem nas mídias populares:

  • impossibilidade de encontrar sustento financeiro enquanto pessoa trans
  • perda de relacionamentos pessoais extremamente significativos sem substituição à altura
  • pressão familiar, social, religiosa
  • ausência de ambiente livre de preconceitos para se discutir as questões da sexualidade, seja definição de gênero, seja orientação afetiva-sexual, tanto na família quanto nos serviços de saúde

Na minha vivência profissional, encontrei 4 pessoas que não se perceberam mais enquanto transvestegênere. Suas motivações: extrema opressão física, psicológica e financeira; abuso religioso; não informada.

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