A história ensina

O escândalo da primeira cirurgia trans no Brasil

a primeira cirurgia em uma pessoa trans foi transformada em uma história de horror

Sad and frightened little girl with bloodshot, bruised eyes crying scared. Concept of child violence, domestic abuse. Sad, depressed being victim of parents and their agression. Children's rights.
Sad and frightened little girl with bloodshot, bruised eyes crying scared. Concept of child violence, domestic abuse. Sad, depressed being victim of parents and their agression. Children's rights.

Provavelmente grande parte das pessoas no Brasil sabem que o SUS – Sistema Único de Saúde – prevê apoio aos cuidados com a saúde das pessoas transvestegêneres. Antes de conversar sobre ele é necessário resgatar alguns dados históricos.

Quando foi realizada a primeira modificação genital em uma pessoa trans no Brasil? No governo Lula, ou Dilma? Quem sabe do Fernando Collor ou do José Sarney?

A cirurgia

Ocorreu há 50 anos, em plena ditadura militar. Ocupava a presidência brasileira o General Emílio Garrastazu Médici, responsável pelo aperto da repressão sobre os “inimigos da revolução”. Roberto Farina não inventou a roda – cirurgias já eram realizadas há décadas em outros países.

Como professor de cirurgia plástica na Escola Paulista de Cirurgia, recebeu a mulher trans Waldirene Nogueira. Ela havia sido avaliada pela endocrinologista Dorina Epps em 1969. E estava em acompanhamento com diversas profissões da área de saúde. A equipe recomendou a cirurgia. Dr. Farina aprendeu a realizá-la e operou Waldirene em dezembro de 1971. Ela tinha 26 anos de idade.

O resultado

Como ela avaliou o procedimento?

Minha vida antes da operação era um martírio insuportável por ter que carregar uma genitália que nunca me pertenceu. Depois da operação fiquei livre para sempre – graças a Deus e ao dr. Roberto Farina – dos órgãos execráveis que me infernizavam a vida, e senti-me tão aliviada que me pareceu ter criado asas novas para a vida“.

O procedimento, sem custos para ela, foi realizado sem alardes. Tornou-se conhecido quando Waldirene solicitou, em 1975, na justiça, a mudança do seu nome de registro. Será que imaginava as possíveis consequências?

Os problemas

O que pediu, somente conseguiu em outubro de 2010. Estava com 60 anos. Mas antes, experimentou o que é ser submetida a um ambiente estruturado para anular as pessoas trans. Conduzida à força ao Instituto Médico Legal, foi submetida a exame ginecológico e a fotos. Aquele, para verificar se era mulher. Estas, despida, perfis e frontal. O médico, Harry Shibata.

Shibata (pronuncia-se chibata?) acumulou fama como legista. Disse que Carlos Marighela fora morto em tiroteio. Foi executado. Atestou que Wladimir Herzog cometera suicídio. O primeiro caso de alguém que consegue se matar por enforcamento ficando com os joelhos no chão… Assinou que Sônia Maria Angel Jones morrera em tiroteio. Fora torturada e estuprada.

O documento policial afirmava, sobre o consentimento prévio de Waldirene:

Dizer-se que a vítima deu consentimento é irrelevante“.

O procurador, Luiz de Mello Kujawski, afirmou:

Não há nem pode haver, com essas operações, qualquer mudança de sexo. O que consegue é a criação de eunucos estilizados, para melhor aprazimento de suas lastimáveis perversões sexuais e, também, dos devassos que neles se satisfazem. Tais indivíduos, portanto, não são transformados em mulheres, e sim em verdadeiros monstros“.

Outra parte do processo legal diz: “Embora mutilado, Waldir continuará sendo o que sempre foi, ou seja, um homem que mantém relações sexuais com outros homens. Mas a prática de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo será sempre uma aberração, tanto à natureza como à lei.”

O final da história

Dr. Farina foi condenado em primeira instância a 2 anos de prisão. Recorreu em liberdade e foi absolvido pelo Tribunal de Justiça. Do seu processo, cito alguns trechos elucidativos:

Então, admitindo-se que ele possa oferecer sua neovagina a homens e então somos forçados a concluir que agora ele é uma prostituta. E o que dizer disso quando quando se sabe que a lei pune o induzimento, instigação e auxílio a prostituição.

Farina quer que os portadores de distúrbios mentais possam autorizar a realização em seus próprios corpos de cirurgias mutiladoras; que os homossexuais – ‘bichinhas’ – entrem em fila para conseguirem a cirurgia; que os pais de família sejam obrigados a suportar, em seus lares, filhos homossexuais – do que ninguém está livre – e ainda mutilados

Ele recebeu apoio de profissionais da medicina e de instituições internacionais. O que não impediu que perdesse clientes e fosse alvo de chacotas. Suportou difamações como “consulte com ele e ganhe um pênis no nariz”.

Em 1978 a justiça considerou que “não age dolosamente o médico que, através de cirurgia, faz a ablação de órgãos genitais externos de transexual, procurando curá-lo (sic) ou reduzir seu sofrimento físico ou mental. Semelhante cirurgia não é vedada pela lei, nem pelo Código de Ética Médica.” Farina faleceu, em 2001, com mais de 80 anos de idade.

Aprendendo

O que chocou e provocou tanta histeria? Waldirene adorava carnavais. Era um dos poucos momentos que saia à rua. E desfilava um corpo com todos os esteriótipos exigidos do feminino. Um desafio à ideologia de que gênero é atributo imutável e fixo.

Inscrever-se
Notificar de
0 Comentários
mais antigos
mais recentes
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários