O direito das crianças a uma família pode ser usado para impedir as pessoas LGBTQIAP+ constituírem família? O padrão cultural e político vigente diz que família é constituída por um pai (pessoa testiculada) e uma mãe (pessoa com ovários), que obrigatoriamente desempenham o papel masculino e feminino, respectivamente. Na linguagem especializada, modelo cisheteroafetivo de família.
Este padrão finge ser natural, biológico. Ou seja, pretende estipular que pessoas com testículos não podem ser mães e pessoas com ovários não podem ser pais. Essas possibilidades seriam antinaturais, formas não saudáveis (eufemismo para doenças) de ser. Essa naturalidade assumida implica que crianças com testículos infantis (que não produzem hormônios) e com ovários infantis (que não produzem hormônios) não podem caminhar de outra forma. As primeiras serão homens, as segundas, mulheres. E somente poderão ter afeição saudável por pessoas com gônadas diferentes, jamais pelas mesmas.
As crianças nascem nesse caldo político-cultural encarnado por quem as gerou. Idealmente, as pessoas geradoras constituem com elas a família. Esse ambiente as obriga a pensar como as adultas pensam. Quem vai imaginar que uma criança afrontará as pessoas que desempenham o papel psicológico da paternidade e maternidade?
Como uma criança tida como menino vai gostar de rosa? E a outra, tida como menina, vai gostar de azul? Como o menino que não gosta de brincar de bandido e mocinho vai ser livre para dizer que quer brincar de boneca? Como a menina que ganhou uma barbie vai ser livre para dizer que preferia uma bola de futebol? E se ela disser que gosta de meninas? O que será dela? E se ele disser que gosta de meninos, o que acontecerá? Todas essas percepções infantis serão encaradas como doença? Serão as crianças encaminhadas à psicologia, à endocrinologia, à religião… à polícia?
Crianças são educadas ouvindo frases como: “Deus fez homem e mulher, Adão e Eva, não Eva e Eva ou Adão e Adão”; “o natural é homem com mulher. Homoafetivos são estéreis, não produzem filhos”; “prefiro minha criança morta a ela ser LGBTQIAP+”. O que elas farão com sentimentos e percepções que brotam, não sabem de onde nem como, dentro de si, e que contrariam essas ideias? Ideias defendidas pelas pessoas que são tidas como perfeitas e com direito natural a ter sua ideologia acatada. Que criança é livre para dizer o que é, o que sente, o que pensa?
O sistema atual diz que a criança tem que ser protegida. Como se fosse possível tornar alguém LGBTQIAP+. Como se fosse possível tornar homoafetivas pessoas hetero; ou cisgêneres pessoas transgêneres. A criança tem que ser protegida da informação de que a ideologia de quem as gerou não é obrigatória? Tem que ser protegida da possibilidade de ser autêntica e expressar o que vai dentro de si, sem ser considerada anomalia, doente ou mentalmente (e espiritualmente) perturbada?
São pai e mãe livres para defenderem suas crianças LGBTQIAP+? Pais e mães defenderão suas crianças do ”bullying” das turmas, da repreensão do corpo docente da escola, do estupro corretivo das pessoas mais velhas? Terão a garra e força interior necessárias para romper os grilhões nos quais cresceram e se educaram? Conseguirão sentir orgulho delas, e não vergonha?
Este sistema rouba das crianças as pessoas que deveriam ter os papéis amorosos maternos e paternos, substituindo-as por outras com o papel de polícia, naturalmente violenta. É possível aprender a amar através de quem atua pela violência? É possível aprender relações pessoais saudáveis através de quem reprime e tolhe?
Um sistema que atua assim abusa das crianças e as usa para se perpetuar. É pedófilo.
Crianças têm o direito de não seguir as normas de gênero e sexualidade quando elas conflitam com a percepção de si mesmas. Quem as defenderá?
Texto reescrito a partir do artigo “quem defende a criança queer”, de Paul Preciado.