Dia 17 de maio é mais uma data importante de luta e reafirmação de direitos civis da população LGBTQIAPN+. Desde 2005, a Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu esta data como dia Internacional contra a LGBTfobia, porque nela, em 1990, a homossexualidade havia sido desclassificada como transtorno mental pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
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Muitas foram as vítimas dessa classificação no passado. Lobotomia, eletrochoques, internações compulsórias em clínicas psiquiátricas e castração química eram o destino dessa comunidade. Allan Turing, prestigiado matemático britânico, considerado um dos pioneiros da ciência da computação e responsável por desarticular ataques alemães durante a Segunda Guerra Mundial, através de criptografia, salvando, aproximadamente 14 milhões de vidas, foi uma dessas vítimas (BBC, 2014).
Após a castração química e em estado de depressão, Turing, suicidou-se aos 41 anos de idade. Ninguém estava imune a essa perseguição e destino.
Somente em 2013, a Inglaterra concedeu perdão póstumo ao matemático e analteceu para o mundo a sua genialidade.
Mas e o silêncio? Mais de sessenta anos de um silêncio ensurdecedor. que consentiu e legitimou práticas preconceituosas e letais.
Nesta semana, já em 2024, portanto quase setenta anos após o fim da Segunda Guerra, o vizinho país, irmão latinoamericano, Peru, classifica a transexualidade como doença mental. Um retrocesso inimaginável aos padrões civilizatórios. E o silêncio se impõe com a mesma força dilacerante da espada que corta a cabeça de gays em Mossul, no Estado Islâmico, e do revólver apontado pra nossa cabeça nas noites paulistanas.
O silêncio atormenta porque ele não é exclusividade do Poder Público, dos Partidos Políticos, das casas legislativas. Ele está em todo lado e ao nosso redor, como no filme de Kleber Mendonça Filho, “O Som ao Redor”, entranhado nas paredes dos nossos lares, nas escadas dos nossos condomínios e nas esquinas das nossas periferias.
Quanto silêncio há em nossa história?
Quantas vozes foram caladas e mortas por serem quem são e quantas outras sequer se pronunciaram?
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Qual a medida do silêncio conveniente?
Qual é o seu silêncio? O que não constrange? O que lhe dá passabilidade e lhe mantém privilégios? O que não lhe envolve em questões que, a rigor, não são suas?
O que o seu silêncio permite e endossa?
Sendo professor de Direito, pesquisador e tendo uma boa rede de apoio, aos 40 anos, me questiono sobre a solidão dos LGBTs.
O quanto nós, sociedade civil, somos capazes de nos comprometer com suas lutas e sua proteção. Calar é o caminho mais fácil, o nosso pai Europeu nos ensinou, mesmo tendo relegado sua cria à escravidão e à miséria. Mas Nossa mãe indígena nos ensina a lutar com arco e flecha e, com sabedoria, reinvidicar o que é nosso.
A solidão do dia 17 de maio é vivida todos os dias por nós, LGBTs. Sofremos homotransfobia todos os dias… seja ela institucional (nos rigores do conservadorismo de nossas falíveis instituições), seja estrutural (corrompendo a sociedade com falácias fundamentalistas que criam verdadeiros exércitos de extermínio contra a nossa existência), seja velada (através da omissão, da falta de importância dada às nossas questões, nos reduzindo a corpos tão somente hipersexualizados, ou precisando da chancela de outras pessoas hetetocisnormativas para validar nossos discursos).
A solidão também nos mata aos poucos. Ela destrói nossas esperanças e nossa fé em um mundo possível. Muitos de nós não possuem famílias acolhedoras, emprego e renda, ambientes de trabalho inclusivos, amigos, ou mesmo um Sistema de Educação suficientemente capaz de coibir o bullying que destrói nossa saúde mental e, consequentemente, nossas prospecções de futuro e autonomia.
O silêncio dos nossos aliados, amigos, colegas de trabalho, vizinhos, familiares e do próprio Estado têm permitido nossa morte aos moldes da espetacularização, sugerida por Vargas Llosa, em “A Civilização do Espetáculo”.
Estamos contemplando, por vezes, com entusiasmo e morbidez, a catástrofe do preconceito que coloca o Brasil, há 16 anos consecutivos, como o país que mais mata pessoas trans em todo mundo.
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Os crimes são violentos e tem, infelizmente, se naturalizado, em uma sociedade que há séculos consome tragédia e se cala diante das mesmas.
Hoje, minha única memória é o silêncio. Não temos mais tempo pra chorar, como diria Lélia Gonzales, filósofa e ativista negra. Precisamos seguir a luta.
Contudo esse silêncio me vulnerabiliza e traz à tona a histórica solidão dos LGBTs, relegados aos guetos, às manifestações perseguidas no período da Ditadura, à personificação do estigma da AIDS e à culpa pela desordem do mundo, para os fundamentalistas cristãos e comerciantes da fé alheia.
“Solidão é lava, que engole tudo” nos ensinou o mestre Paulinho da Viola. E essa solidão tem engolido nossa voz, nossos sonhos, nossas liberdades e nossa cidadania.
Mas a culpa não é nossa. Nunca foi, embora até hoje o machismo e o patriarcado queiram nos rendê-la.
A culpa é do Silêncio. É do silêncio do colega que não compartilha seu post. É daquele familiar que não lhe quer por perto e finge que você não existe. É da empresa que não lhe contrata ou lhe mantém numa posição de subalternidade. A culpa é de quem presencia tudo isso e fica inerte. A culpa é do Estado que precisa intervir na prestação adequada da saúde e da educação. A culpa é do vizinho que sabe com quem você dorme, mas não chama a polícia quando você é vítima de uma violência. A culpa é de quem caricaturiza nossa imagem. De quem, tendo condições, não busca se letrar e espera que nós sejamos sempre professorais. É daqueles que, levianamente, nos associam à pedofilia e à promiscuidade. É de quem critica nossas performances femininas. É de um Sistema que se beneficia com a nossa opressão.
Insisto, a culpa é do silêncio e, ao contrário do famoso filme com Antony Hopkins, este silêncio não é dos inocentes.