Há nomes que não se calam, ainda que tentem bani-los das manchetes. Nomes que se recusam a morrer na boca do tempo porque não foram feitos só de letras, mas de músculos, memória e insistência.
Imane Khelif é um desses nomes. Ou talvez seja mais do que isso, acho que um símbolo. Um punho em movimento. Uma respiração ritmada entre esquiva e ataque. Uma flexa lançada com a força de um direto no queixo da convenção.
Imane nasceu no deserto. Não o das paisagens, mas , o da escassez de oportunidades, de voz, de legitimidade. Na Argélia, país que ainda engatinha no reconhecimento pleno do corpo feminino como espaço político, ela encontrou no boxe uma forma de existir.
Enquanto muitas garotas aprendiam a silenciar os próprios gestos, Imane descobriu cedo que o movimento podia ser liberdade. Os ringues tornaram-se seus templos. Os treinos, sua liturgia. Cada soco era mais do que técnica , era uma tradução visceral de tudo que ela representa. Não com palavras, mas com a precisão dos golpes que levavam adversárias à lona.
Rápida, feroz, elegante, Imane não parecia lutar apenas contra outras mulheres. Lutava contra a dúvida alheia, contra o olhar que se demorava mais em sua presença do que em seu desempenho, contra os fantasmas coloniais e patriarcais do mundo.
Imane Khelif é uma pessoa intersexo. Houve uma confusão inicial e desinformação, com muitas pessoas a entenderem que ela seria transexual, mas o Comitê Olímpico Internacional (COI) esclareceram que se trata de uma condição intersexo.
Pessoas intersexo são aquelas que não se encaixam perfeitamente nas definições típicas de sexo masculino ou feminino. No caso de Imane, ela foi reprovada em um teste de gênero da Associação Internacional de Boxe (IBA) que indicou cromossomos XY (masculinos), embora ela seja identificada e tenha sido registrada como mulher. O COI, no entanto, autorizou sua participação nas Olimpíadas, enfatizando que o caso não se trata de uma questão transgênero.
A glória veio. Torneios. Pódios. Pela primeira vez, uma mulher argelina chegava à final do Campeonato Mundial de Boxe Feminino. Era 2023. A vitória parecia inevitável. A história, pronta para ser escrita com letras de ouro.
Então veio o golpe que ela não podia prever.
Foi um golpe seco, burocrático, frio. A Federação Internacional de Boxe anunciava a suspensão de Imane da final, alegando uma “inconformidade hormonal”. Palavras clínicas e cruéis. A decisão não era sobre trapaça, mas sobre pertencimento. Sobre quem pode , e quem não pode ser considerado mulher no alto rendimento esportivo.
Imane não havia tomado substâncias proibidas. Sua “falha” era ser quem era, num corpo que não cabia nos moldes definidos por tabelas e critérios forjados sob uma lógica binária. E foi punida por isso.
O silêncio que se seguiu não foi dela. Foi do sistema. Das federações. Da mídia esportiva que, tantas vezes, ignora quando a injustiça não encaixa em seus roteiros de heroísmo. Mas mesmo fora do ringue, Imane continuou a reverberar.
Seu caso escancarou a incapacidade do esporte de lidar com a diversidade corporal. Escancarou o desconforto das instituições diante do que não podem controlar. Escancarou, também, o quanto a glória feminina ainda é medida segundo critérios masculinos.
Imane Khelif não havia trapaceado. Não havia usado substâncias proibidas, não havia desrespeitado o espírito do jogo. Sua falha era ser quem era, num corpo que não cabia nas categorias forjadas por uma lógica que insiste em dividir o mundo em binários estreitos.
Imane virou manchete, e depois bandeira. Na Argélia, jovens boxeadoras começaram a treinar com mais intensidade. Em redes sociais, atletas do mundo todo se perguntavam, afinal quem decide o que é justo? A suspensão, que tentava apagá-la, serviu apenas para ampliar o alcance do seu legado. O que era para ser fim virou gênese. E como toda gênese, gerou multiplicações.
Porque o boxe, no fim das contas, sempre foi um lugar onde a resistência se esculpe a cada movimento. E Imane Khelif continua sendo um corpo resistente. Um corpo que não pede desculpas. Um corpo que carrega a história das mulheres que vieram antes dela ,e das que virão depois.
Seu legado não se mede em medalhas, embora as mereça. Mede-se na ruptura que promoveu. Na coragem de permanecer. Na recusa em aceitar que sua existência fosse definida por índices hormonais. Ela não precisou gritar para ser ouvida. Bastou estar ali, de punhos cerrados, olhos fixos, corpo inteiro.
Imane pode ter sido afastada do ringue, mas nunca do combate. E, como toda boa lutadora, sabe que algumas vitórias não se dão no pódio, mas naquilo que se provoca no mundo. Ela provocou. E é por isso que o nome Imane Khelif nunca mais será dito em voz baixa.
Em Paris, enfrentou não só adversárias, mas o furor de uma tempestade virtual. Acusaram-na de ser quem não é, jogaram palavras como pedras, questionaram sua essência. “Você não pertence”, diziam vozes anônimas, enquanto ela, com a dignidade de quem conhece sua verdade, nocauteava a chinesa Yang Liu e conquistava o ouro. Imane não apenas venceu, ela reescreveu o que significa ser mulher no esporte.
Mas o mundo, que aplaude com uma mão, julga com a outra. A suspensão veio como um golpe inesperado, em maio de 2025, pelas mãos da World Boxing. Testes genéticos, disseram, para garantir equidade.
Imane, que sempre foi mulher, que cresceu sob o sol argelino com a identidade gravada em sua certidão, agora enfrenta o vazio do ringue interditado. A Copa do Mundo de Eindhoven, que seria sua próxima dança, ficou sem sua protagonista. Não por falta de talento, mas por regras que tentam encaixar a complexidade humana em caixas estreitas.
No silêncio da suspensão, ouço o eco de sua história. Imane é mais que uma atleta. É um espelho onde se refletem as lutas de tantas. Quantas mulheres, em vilas como Tiaret, sonham com luvas que não podem alcançar? Quantas enfrentam o mundo para provar que pertencem? Sua medalha não é só dela, é das meninas que, nas ruas poeirentas, imaginam o pódio. É das mães que vendem cuscuz para sustentar sonhos. É de todos que acreditam que a força não se mede em cromossomos, mas em coragem.
Imane Khelif é uma Joana d’Arc ,na vida e no ringue, que é seu templo sagrado.Ela dança entre os golpes com a coragem de quem enfrenta o destino.
Seus punhos , são lâminas afiadas, como espadas que rasgam o silêncio com a fúria da justiça.
Ousada, indomável, corajosa, ela é sim uma Joana d’Arc, erguendo seus punhos contra o patriarcado.
Cultivemos nossas ilhas !! Eu sinto !
Silvia Diaz , é Atriz, Performer, Dramaturga e Roteirista. Estudou interpretação Teatral(Unirio). Graduada em Produção Audiovisual(ESAMC). Dramaturgia ,SP escola de Teatro. Apenas uma Artista que vende sonhos em dias cinzentos. E quando os dias não os dias não forem tão trevosos, ainda assim continuarei a vender meus sonhos!! Cores, abraços, afetos, lua em aquário. Fluindo . Cultivando minha Ilha.. Eu Sinto…
@silviadiaz2015