Minha mãe nunca conseguiu me compreender de verdade. Pelo menos, era o que eu achava. Não por falta de amor, talvez, mas porque o universo dela não comportava a pessoa que sou. Cresci sentindo o peso de seus silêncios, silêncios que falavam mais do que qualquer palavra. Ela era feita de convicções sólidas, fé inabalável, regras que não se curvavam. E eu, filha lésbica, fui algo que ela nunca soube como consertar.
Nunca houve brigas, gritos ou portas batendo. Nosso distanciamento era mais sutil, um abismo quieto, uma neblina espessa que nos separava sem alarde.
Lembro das inúmeras vezes em que tentei falar sobre uma menina que amei muito . E o quanto era importante para mim, compartilhar com ela. Tentava contar como ela me fazia sorrir só com um olhar, como minha alma dançava quando ela estava por perto. Mas minha mãe desviava, com uma rapidez quase ensaiada. Preferia falar do clima, das notícias ou da novela das oito. “Você já pensou em se casar, filha?”, perguntava, como se a vida que eu levava fosse um desvio, um erro a ser reparado.
Minha mãe era conservadora, outra geração que por mais que amasse um filho ou filha, tinha coisas que não aceitava, no caso dela, ela sempre preferiu o silêncio.
Os anos passaram, a rotina seguiu seu curso silencioso, ela envelheceu muito rápido, levando aos poucos o brilho dos olhos dela. No hospital, entre o frio metálico dos equipamentos e o cheiro constante de antisséptico, eu segurava sua mão frágil, quase translúcida. Ela estava presente, consciente, mas exausta. Carregava o cansaço de uma vida inteira.
“Filha”, ela disse, a voz rouca, quase um sussurro, “eu preciso te contar uma coisa.” Meu coração disparou.
“Eu nunca tive vergonha de você. Nunca. Só tinha medo. Medo de que o mundo te machucasse, de que você sofresse por ser quem é. Mas, eu estava errada. Não era você que precisava mudar, era eu.”
As lágrimas escorriam pelo meu rosto, e eu não sabia se eram de alívio ou de dor. “Mãe, eu só queria que você me aceitasse”, murmurei. Ela sorriu, um sorriso fraco, mas verdadeiro. “Eu te aceito, minha menina. E agora, sabendo que vou partir, só quero que você seja feliz. Ame quem você ama, viva como você é. Não deixe ninguém, nem mesmo eu, te apagar.”
Pela primeira vez, senti que éramos mãe e filha de verdade, sem barreiras. Mas na manhã seguinte , minha mamãe se foi. Silenciosa, como sempre foi, ela partiu enquanto o sol nascia.
O enterro foi simples, como ela queria. Alguns familiares se reuniram, murmurando condolências, enquanto eu tentava encontrar sentido na ausência. O céu estava claro, mas meu coração parecia envolto em nuvens. Quando o caixão começou a descer, algo chamou minha atenção. Um canto, suave e melodioso, cortou o ar. Levantei os olhos e vi, pousado em um galho próximo, um pássaro azul. Suas penas brilhavam como se carregassem um pedaço do céu, e seu canto era diferente de tudo que eu já ouvira. Nunca tinha visto um pássaro assim, não ali, não na vida.
Ele cantou enquanto a terra cobria o caixão, como se estivesse guiando algo para além. E então, num instante, alçou voo, desaparecendo no horizonte. Senti um aperto no peito, mas não era tristeza. Era paz. Aquele pássaro, eu sei, levou a alma da minha mãe. E ela, finalmente livre dos medos e das amarras, me deixou com a certeza de que me amava. De que me aceitava. Do jeito dela, mas, sempre me amou.
O luto tem sua jornada, e seu tempo.
Cultivemos nossas ilhas !! Eu sinto !
Silvia Diaz , é Atriz, Performer, Dramaturga e Roteirista. Estudou interpretação Teatral(Unirio). Graduada em Produção Audiovisual(ESAMC). Dramaturgia ,SP escola de Teatro. Apenas uma Artista que vende sonhos em dias cinzentos. E quando os dias não os dias não forem tão trevosos, ainda assim continuarei a vender meus sonhos!! Cores, abraços, afetos, lua em aquário. Fluindo . Cultivando minha Ilha.. Eu Sinto…
@silviadiaz2015