Direito a Deus

A Bíblia Condena Transgênero?

Há um discurso sociorreligioso no sentido de que as Pessoas Trans são contrárias a Deus. Essa fala tem embasamento bíblico?

Foto: Arte Canva
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Não há texto bíblico que condene a identidade das pessoas trans. Porém, existe uma passagem utilizada por alguns líderes religiosos, os quais interpretam a Bíblia em sua literalidade e a utilizam para dizer que pessoas trans são condenadas por Deus.

A passagem se encontra no livro de Deuteronômio 22:5 e diz: “Não haverá traje de homem na mulher, e não vestirá o homem vestido de mulher: porque, qualquer que faz isto abominação é ao Senhor teu Deus”.

Claro que para quem já procurou se informar, a questão das pessoas trans não diz respeito a troca de vestimenta masculina pela feminina ou vice-versa. A identidade de gênero é uma situação vivida por um grupo de pessoas, as quais chamamos transgênero, que não se identificam com o sexo biológico com o qual nasceram e, consequentemente, com o gênero que lhe foi imposto.

Ainda há muito a se desconstruir no que diz respeito ao conceito de sexo e de gênero. A sociedade aprendeu que o bebê já nasce com o gênero definido, ignorando que nascemos na verdade com o sexo biológico. O gênero é uma construção social, passando por questões culturais. Não se nasce homem ou mulher. Inclusive, Deus não criou homem e mulher. Ele criou “zakhar” (macho) e “nqevah” (fêmea). Essa é uma verdade que o conservadorismo se nega a aceitar, mas não há como refutar o original das escrituras.

Mas, então, a qual contexto se refere a passagem de Deuteronômio 22:5?

O primeiro aspecto que nos fornece uma pista é o linguístico. Quando voltamos o estudo para o original bíblico, na língua hebraica, uma primeira palavra nos dá um “norte”, qual seja, o termo hebraico traduzido como “abominação”.

A palavra “abominação” vem do hebraico toevah, que se refere a abominação, especialmente idolatria, conforme nos ensina a Bíblia de Estudo Palavra-Chave da Casa de Publicações da Assembleia de Deus – CPAD.

Quando o texto no original traz a palavra toevah, ele está se referindo a abominação de ordem ritualística, idolatria cultual, ou seja, um ato condenado não em si mesmo, mas porque era um meio para se alcançar determinada finalidade. Nesse caso, o ato reprovado era o meio para se alcançar a idolatria a algum deus pagão. Essa é a primeira conclusão.

A partir dessa tradução, passamos ao contexto religioso daquele tempo para descobrir de qual rito pagão o texto está falando.

No tempo de deuteronômio, o povo estava peregrinando a caminho da terra de Canaã. O livro de deuteronômio, inclusive, finaliza com o relato da morte de Moisés.

Quando o povo de Israel saiu do Egito, um dos primeiros alertas recebidos da parte de Deus foi a proibição de se praticar as obras dos povos cananeus, os quais eram politeístas e muito idólatras. Para quem conhece um pouco das Escrituras, sabe que o pecado da idolatria dos povos pagãos era algo abominável aos olhos de Deus.

Nessa linha, considerando que a palavra toevah indica que o ato abominável era de ordem cultual, quando pesquisamos a cultura e religião dos povos canaanitas, tomamos conhecimento do culto à deusa Astarte, também conhecida como Astarote, Ishtar, Vênus ou Afrodite conforme o povo que a cultuava.

Não obstante as determinações de Deus, por meio de Moisés, o livre arbítrio levou os hebreus em muitos momentos a desobedecerem, fazendo sua própria vontade. Nesse contexto, eles incorporaram as tradições religiosas dos povos pagãos, realizando sacrifícios a deuses cultuados por aquelas civilizações.

Especificamente no culto à deusa Astarte, um dos rituais era idêntico à transcrição do livro de deuteronômio 22:5. Havia cultos nos quais os homens se vestiam de mulher e as mulheres se vestiam de homens.

Observe o relato que o autor Fernand Robert faz acerca do culto à deusa Afrodite no livro A Religião Grega:

“A primeira relação consiste num rito comum aos cultos de Ares e Afrodite: festas com disfarces de mulheres em homens e de homens em mulheres para conjurar influências nefastas contra o sexo. Os mitos falsamente explicativos contarão – por exemplo, em Tégea ou em Argos – façanhas militares realizadas por mulheres e assim informarão sobre festas como as Hibrísticas de Argos, nas quais as mulheres se vestiam de homens (chegavam inclusive a usar barbas postiças para dormir com seus maridos) e os homens de mulheres, em comemoração, dizia-se, a uma batalha em que elas tinham, sob o comando da poetisa Telesila, restabelecido a situação militar após uma derrota dos homens em combate contra o espartano Cleómenes; era uma festa de Afrodite.”

Note que o ritual descrito apresenta homens e mulheres em igualdade de atuação, o que não era o caso do mundo do Velho Testamento. Não seria permitido a uma mulher circular livremente pela rua usando as vestimentas que ela quisesse.

Vale ressaltar que a mulher era um bem de propriedade do homem da casa, tanto que Ló ofereceu suas filhas como se fossem uma mercadoria qualquer. A mulher, portanto, não tinha essa autonomia social.

No entanto, no contexto religioso o cenário sociocultural dá lugar àquilo que é requerido pela divindade adorada. Era a deusa quem determinava como seria o ritual.

A Bíblia, além de citar a deusa Astarte, com nome de Aserá em algumas passagens, também nos traz relato da simbologia dessa divindade. Na passagem descrita em Deuteronômio 16:21, Deus faz a seguinte proibição:

“Não plantarás nenhum bosque de árvores junto ao altar do Senhor teu Deus, que fizeres para ti”.

Qual seria o problema de se plantar um bosque de árvore junto ao altar de Deus? O relato parece falar de algo sem sentido, mas a deusa Astarote era representada por um tronco de árvore sem ramos plantado no chão e seus cultos eram realizados em bosques.

Ou seja, a passagem de deuteronômio não condena pessoas transgênero e não pode ser interpretada sem a análise, primeiro, do contexto linguístico, e depois do contexto sociocultural.

Inclusive, o leitor já observou que a passagem de deuteronômio 22:5 gera conflito até mesmo entre as igrejas, no que diz respeito à vestimenta permitida para as mulheres? Algumas permitem que mulheres usem calças jeans. Outras, não permitem alegando que essa passagem proíbe, pois calça é vestimenta masculina.

A verdade é que as igrejas fazem uso de uma passagem que nem elas sabem como interpretá-la.

A conclusão que se chega é: não importa se determinada interpretação faz sentido, o que importa é reprimir e oprimir.

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