A passagem da carta de romanos 1:26-27 é um dos textos bíblicos usados pelos conservadores para dizer que Deus condena tanto gays quanto lésbicas.
Segundo a passagem bíblica, as mulheres deixaram o “uso natural” ou “contrário à natureza”, e semelhantemente os homens.
Alfonso Cuatrecasas, autor do livro Erotismo no Império Romano, analisando o cenário cultural e axiológico da Roma Antiga, nos traz a seguinte reflexão:
“quando ouvimos, estudamos e nos deparamos com um fato histórico, um comportamento ou um costume que aparecem aos nossos olhos como incompreensíveis e, muitas vezes, inadmissíveis, deveríamos ter sempre presente que um sucesso ou uma situação, afastados de nosso tempo, não podem ser julgados segundo nossa escala de valores. Para sermos objetivos, temos de olhar, interpretar e julgar os fatos levando em conta os critérios e a mentalidade da época em que aconteceram.”
Partindo desse pensamos, quando estudamos a passagem da carta aos romanos sob a ótica dos conservadores, alguns questionamentos surgem:
- Por que o texto começa falando de idolatria?
- Amar alguém é imundície e desonra de corpos só porque a pessoa é do mesmo gênero?
- Se amar alguém do mesmo gênero é tão abominável assim, por que Deus não me liberta?
- Que Deus é esse tão insensível ao que eu sinto e não tenho controle?
Pois bem. O ponto de partida para se compreender esse texto é a análise das expressões “uso natural” e “contrário à natureza”, as quais são interpretadas como significando “contrárias às leis da natureza de Deus”.
Entretanto essa é uma tradução equivocada. A palavra “natureza” vem do original grego “physis”, a qual significa “natureza inerente”. Marilena Chauí, na obra Introdução à História da Filosofia – Vol I, nos ensina que para os gregos “A phýsis é aquilo que, por si mesmo e de si mesmo brota, jorra, desabrocha e se manifesta. Porque é o manifesto e não o oculto”. (…). A phýsis como natureza íntima e disposição ou caráter íntimo e natural de um ser não se reduz aos corpos ou ao corpóreo. A alma, o psíquico, o espírito, o pensamento também pertencem à phýsis, também são produzidos por ela e a manifestam. (…) “A phýsis abarca a totalidade de tudo o que é. Pode ser apreendida em tudo o que existe e em tudo o que aparece e acontece: o céu, a terra, os astros, a aurora, o crepúsculo, o eclipse, as plantas, as estações do ano, os mares, o fogo, as pedras, os animais, os homens, a moral humana, a política, as ações e pensamentos dos homens e dos deuses e os próprios deuses; portanto, o humano e o divino são phýsis. (…) os primeiros filósofos afirmaram que “nada vem do nada e nada retorna ao nada. Não há o nada. Há a phýsis”.
Logo, quando Paulo diz que “até a mulheres deixaram o uso natural, contrário à natureza”, ele está relatando que aquelas mulheres naturalmente não faziam sexo com outras mulheres. Não era essa a natureza, o “uso natural” delas. Porém, por uma razão estavam fazendo, e esse motivo era abominável aos olhos de Deus.
A partir daí você analisa que quando a carta traz expressões como “divindade”, “conhecendo a Deus, não o adoraram como Deus”, “mudaram a glória de Deus incorruptível na semelhança de imagem de homem corruptível, e de aves, répteis”, logo em seguida ela usa a expressão “pelo que”, ou em algumas versões “por causa disso”, trazendo um vínculo de causa e consequência. É como se o apóstolo dissesse: “por causa da idolatria, Deus os entregou às paixões infames”.
Nesse ponto, há um erro de interpretação a ser considerado. A expressão “paixões” vem do grego “páthos” e significa “luxúria, depravação, desejo desenfreado”, e não “paixão romântica”.
Quando a palavra é traduzida como “paixões”, passa a equivocada ideia de que Paulo estaria dizendo que gays e lésbicas se apaixonam, mas essas relações são infames. Essa interpretação não condiz com o original.
Inclusive, o significado correto da expressão “paixões infames” responde ao segundo questionamento feito: amar alguém é imundície somente pelo fato de a pessoa ser do mesmo gênero?
A resposta: Não, não é. Paulo não se referia aos relacionamentos entre pessoas do mesmo gênero, os quais, inclusive, eram comuns na Roma Antiga, principalmente entre os homens, claro. A relação sexual entre mulheres não era considerada sexo por causa do machismo.
Pois bem. Se a relação entre homens era comum na Antiguidade; se physis não significa leis da natureza de Deus; e se páthos não significa paixão romântica, o que, então, o apóstolo quer dizer então com essa passagem?
Quando não conseguimos depreender o que um texto antigo quer dizer, precisamos entender o que o contexto cultural, histórico, social e linguístico nos indica.
Nesse sentido, o contexto social nos diz que as relações entre homens eram comuns na Roma Antiga.
Por sua vez, o contexto linguístico nos diz que os significados dos originais das palavras physis e páthos não condizem com o que a teologia conservadora prega.
Passando para o contexto cultural, aprendemos que a sociedade romana vivia o que chamamos de Hedonismo, ou seja, a busca do prazer como bem supremo. Os romanos apreciavam muito o erotismo e, inclusive, a arqueologia nos mostra que eram comuns pinturas eróticas nas paredes de locais públicos ou de casas. Os achados da cidade Pompeu ilustram isso.
Finalizando, resta o que a História nos conta acerca daquele tempo.
A sociedade romana adorava vários deuses e deusas pagãos. A religião era politeísta e várias divindades adoradas por povos cananeus e babilônicos, por exemplo, foram incorporados à religião romana, recebendo outros nomes. A deusa Afrodite dos romanos, a título de exemplo, era chamada de Ártemis, Astarte, Astarote ou Aserá no antigo testamento. Outra divindade adorada pelos romanos era Baco, que na Grécia era conhecido como Dionísio, e na história você ouve falar dele como o “Deus do Vinho”.
Nesse contexto, assim como já era uma prática no período antes de Cristo, na Era Cristã os romanos adoravam esses deuses com rituais que envolviam a prostituição cultual. Mulheres e homens, na condição de sacerdotes e sacerdotisas desses deuses, faziam sexo em adoração. Era o culto da fertilidade, muito comum na antiguidade.
Desse modo, quando Paulo escreve aos romanos, ele quer dizer que havia mulheres e homens, os quais naturalmente não faziam sexo com pessoas do mesmo gênero, mas por alguma razão eles estavam fazendo. A motivação deste ato é o que Paulo descreve a partir do versículo 18, ou seja, a idolatria.
Leia novamente a passagem da Carta de Paulo aos Romanos 1:18-27 como se Paulo dissesse assim: “É isso mesmo! Deus os abandonou porque eles conheceram a Deus, mas não o adoraram como Deus. Essa concupiscência deles, esse desejo desenfreado de idolatria é o que levou Deus a abandoná-los à depravação, para que eles desonrassem seus corpos nesses cultos idólatras”.
Perceba que quando se lê o texto da Carta após a análise dos contextos que envolvem as motivações de Paulo, percebe-se o porquê de o apóstolo tratar a questão de forma tão enérgica. A idolatria pagã sempre foi algo abominável aos olhos de Deus.
Logo, juntando as peças “homens com homens e mulheres com mulheres”, somado ao contexto de “prostituição pagã”, faz mais sentido concluir porque Deus os abandonou.
Eles não foram abandonados porque viviam relações homoafetivas, eles foram abandonados porque eram idólatras. O que diferencia um sexo realizado no contexto de um relacionamento daquele realizado como ritual pagão é exatamente a finalidade. O sexo não era o ponto principal, não era o objetivo. O sexo era o meio para se alcançar o fim, a idolatria.
Situação totalmente distinta é a relação sexual realizada em um relacionamento, em que o sexo é um fim em si mesmo, motivado por amor, paixão ou por atração.
A passagem, portanto, não condena as relações entre pessoas do mesmo gênero. Simples assim.