Direito a Deus

Pessoas LGBTQIAP+ e Fé: Um Direito que o conservadorismo tenta calar

Há séculos a igreja propaga a ideia de que a homossexualidade é pecado, tentando calar o nosso direito a Deus. Mas qual a origem desse discurso?

exclusão dos LGBTIs do amor de Deus
exclusão dos LGBTIs do amor de Deus

Vivemos em um país cuja Lei Máxima, a Constituição Federal de 1988, garante a liberdade de consciência e de crença a todes (permita-me o neologismo inclusivo).

Entretanto, quando a pauta é Cristianismo e LGBTIs os conservadores buscam de todas as formas excluir esse direito.

Sentindo-se os “alecrins dourados de Deus”, os cristãos conservadores adotam a postura de donos do Reino Celestial, de modo que apenas os que eles aceitarem em seu seio serão também aceitos no Céu.

A postura adotada hoje pelas igrejas não é muito distinta daquela descrita por Jesus ao reprovar os fariseus:

Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando”. (Evangelho Segundo Mateus 23:13)

Do mesmo modo, também não é distinta da passagem descrita no Evangelho Segundo Lucas 9:49-50,  segundo a qual os discípulos chegam para Jesus e dizem: “Mestre, vimos um que em teu nome expulsava os demônios, e o proibimos, porque não te segue conosco”.

Jesus, contudo, responde: “Não o proibais, porque quem não é contra nós é por nós”.

Qualquer semelhança com o que presenciamos atualmente não será mera coincidência. A história se repete mesmo, seja em relação aos LGBTQIAP+, seja em relação a qualquer outra vertente não aceita pelo cristianismo.

Na verdade, os religiosos sempre excluíram toda linha de pensamento distinta. Os judaístas rejeitaram Jesus; Martinho Lutero foi excomungado por apresentar suas teses contrárias aos dogmas pregados pela igreja católica; e, hoje, os ensinos da teologia inclusiva são atacados porque afrontam o ensino enraizado a séculos pelo catolicismo e incorporado pelo protestantismo.

Mas, se estamos falando de direitos, importante dizer que quando o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO 26, criminalizando a LGBTIfobia e equiparando-a ao crime de racismo, os ministros decidiram que a repressão penal à prática de homotransfobia (permitam-se o neologismo) não alcançaria e nem limitaria a liberdade dos líderes religiosos de ensinarem e professarem sua fé e doutrina, independente de denominação, “desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.

A despeito da decisão proferida pela Suprema Corte, o discurso de ódio parece estar sempre em erupção. Com um comportamento irracional, de quem parece nunca ter lido o ministério de Jesus, as igrejas não somente se recusam a aceitar os LGBTIs, como ainda tentam impedi-los de terem uma vida de intimidade com Deus. O pensamento é bem simples, incoerente e bem distante da atitude de Cristo: “se nós não gostados de gays, lésbicas e trans, Deus também não irá gostar”.

A fala de Jesus de “que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu” virou escudo para o preconceito, discriminação e discurso de ódio.

O que muitos fiéis não sabem é o momento da história em que a Igreja passou a condenar o sexo entre iguais. Na Roma Antiga e na Grécia Antiga o sexo entre homens era comum e aceito socialmente. Jesus, inclusive, viveu nesse tempo da sociedade romana, sem ter mencionado qualquer reprovação.

A doutrina cristã surge no século I, mas apenas no século XII a igreja católica começa a condenar o sexo que não fosse para a procriação, situação na qual se inserem as relações homossexuais homogenitais. Algumas normas até já haviam surgido contrárias ao sexo entre homens, mas a preocupação já era com a procriação e a taxa de natalidade.

É fato que o dilema entre a sexualidade e a reprodução sempre esteve no centro da discussão da igreja desde os primeiros séculos. Vozes como Clemente de Alexandria e Tertuliano pregavam a função procriadora do matrimônio. A influência do estoicismo, conforme ensina Lúcia Ribeiro,gera uma visão negativa do prazer sexual: o ideal estóico do “homem sábio” considerava como tal o homem que, livre de prazer e de paixão, vive sem afeições e domina seus instintos irracionais.

Desse modo, desde os primeiros séculos da Era Cristão a igreja impôs o que Marilena Chauí define como Repressão Sexual: “conjunto de interdições, permissões, normas, valores e regras estabelecidas histórica e culturalmente para controlar o exercício da sexualidade”.

Marilena explica que é por meio da repressão que se estabelece o que é certo ou errado socialmente em relação aos comportamentos sexuais em uma determinada sociedade. Nessa linha, a repressão sexual faz com que as regras impostas, as quais constituem elementos exteriores ao indivíduo, sejam internalizadas trazendo o sentimento de culpa e vergonha.

A Repressão Sexual tomou mais força ainda na Idade Média. Tomás de Aquino defendia que o comportamento sexual nivelava o homem aos demais animais. Entre os séculos XII e XIV as leis esclesiásticas passam a formar o Corpo do Direito Canônico. Por conseguinte, no século XV surgem os catálogos de pecados, os quais dividem os pecados sexuais entre os que são segundo a natureza e os que são contrários a natureza, tendo como critérios os que permitiriam ou não a função reprodutora.

Segundo Lúcia Ribeiro, mais um fator relevante para a mudança de visão das práticas sodomitas foi a Peste Negra que ocorreu entre 1348 e 1350 e matou um terço das pessoas que viviam entre a Índia e a Islândia. Isso provocou desequilíbrio econômico, decadência da agricultura, ansiedade social, luta frenética pelo lucro, gastos sem controle e inquietação religiosa e social. As pessoas ficaram aflitas para saber como recuperar os níveis anteriores à peste. Foi desse modo que os legisladores, após 1350, mudaram seu modo de ver a sodomia, considerando-a uma ameaça à repopulação”.

Todavia, esse discurso gerou um verdadeiro show de incoerências. A questão reprodutiva deixou de ser um problema a partir do século XIX. Inclusive, passou a ocorrer uma superpopulação. No entanto, a despeito da razão que levou ao discurso contrário às relações entre pessoas do mesmo gênero não mais persistir, o preconceito perpetuou a tese de pecado e permanece até os dias atuais.

Na obra Sexualidade e Reprodução, Lúcia Ribeiro faz um relato cronológico do posicionamento dos líderes da igreja ao longo dos anos, descrevendo que apenas em 1951 o Papa Pio XII flexibiliza a temática relativa à procriação, admitindo a regulação dos nascimentos através do método da continência periódica. Segundo a autora, “Esta declaração significou um ponto de ruptura com a perspectiva tradicional agostiniana, ao reconhecer o direito dos esposos de não querer ter filhos, em um determinado momento, sem por isso ter que renunciar às relações sexuais”.

Interessante observar que o exercício da sexualidade foi determinado por Deus no momento da criação do homem e da mulher, antes do pecado cometido no jardim do éden, conforme relato de Gênesis 1:28. Não obstante, a religião sempre a tratou como algo negativo.

De todo modo, o que a história nos revela é que o início da condenação imposta pela igreja ao sexo entre homens teve uma razão social: a procriação. Não se tratou de uma revelação divina impondo que o sexo homogenital em si seria um erro, mas apenas o fato de o mesmo não ter a finalidade reprodutora.

Havia, portanto, um contexto e uma preocupação, qual seja, a taxa de natalidade.

O problema é a repercussão que essa imposição gerou no decorrer dos séculos, associando a homossexualidade a doença, pecado e crime.

E a incoerência reside em se manter a condenação apenas em relação à homossexualidade, como se pecado fosse em si, permitindo com o passar dos anos os demais atos sexuais que do mesmo modo outrora foram condenados porque possuíam como objetivo único o prazer. A verdade é que isso diz mais sobre o preconceito da igreja do que um dogma vindo de Deus.

E a prova de que esse preconceito não vem de Deus é o fato de que durante anos os religiosos pregaram a libertação da homossexualidade, o que nunca ocorreu. O jeito, então, foi rasurar com uma borracha e mudar o discurso: “não há problema ser homossexual. O problema são as práticas homossexuais”.

Ora! Não seria Deus, então, poderoso para libertar milhares de LGBTIs cristãos? Que espírito da homossexualidade é esse que Jesus não consegue libertar, a despeito de ter operado na vida de todos que se chegaram a ele?

A verdade é que nunca houve espírito da homossexualidade e ninguém foi curado porque nunca houve o que curar, não obstante uns e outros se declararem ex-gays. O número desses é tão insignificante que não condiz com aquele Jesus relatado nas Escrituras.

Em que pese o discurso religioso não aceitar a própria derrota, o fato é que Cristo nunca esteve nessa proposta de “cura gay”.

A verdade é que temos sim o Direito à Fé e o Direito a Deus, tanto sob a ótica legal, quanto sob a ótica de Deus, ainda que o sistema religioso dominante não queira aceitar. Inclusive, eles deveriam questionar Deus acerca do motivo de suas orações não terem sido ouvidas, ao invés de ficarem “passando a borracha” e reescrevendo em cima da escrita não confirmada por Deus.

Até porque, não adianta. Eles escrevem seus dogmas com tanta força, que a borracha só causa mais borrão e vãs contendas.

Talvez se fossem mais nobres e menos ditadores, conseguissem apagar de fato os erros do passado para construir um presente e um futuro mais honesto e coerente com as escrituras.

Conclusão: A escolha do nome “Direito a Deus” tem o seu porquê.

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