Há pelo menos três fatores necessários à saúde de todes pessoas transvestegêneres: dignidade, despatologização, informação. Algumas pessoas trans podem necessitar de outras medidas: hormônios, cirurgias, treinamento vocal, retificação de nome, entre outras. Para as pessoas trans masculinas, a testosterona carrega um preconceito: faz mal ao fígado; detona o corpo.
Provavelmente esta visão equivocada sobre este hormônio vem do seu uso incorreto, indevido e desnecessário por parte de pessoas cisgêneres na academia. Uma publicação recente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia traz informações importantes. Agindo assim, desfaz os dois preconceitos.
A testosterona
É um hormônio produzido por 3 glândulas pares: testículos, ovários e suprarrenais. As primeiras estão nos corpos lidos socialmente como masculinos. As segundas pelos lidos como femininos. As últimas, em ambos.
A princípio, testosterona tem duas funções: transformar um corpo infantil em um tido como masculino; produzir células reprodutoras (espermatozoides). Contudo, sua ação não se restringe a isso. Pessoas adultas que se tornam incapazes de produzi-la têm um problema de saúde chamado hipogonadismo. Este tem, entre outros, os seguintes sintomas: redução da massa muscular; perda de força muscular; perda de pelos; baixa concentração; distúrbios de memória; cansaço fácil; percepção de falta de energia; redução do número de espermatozoides; redução da qualidade de espermatozoides.
A testosterona sintética, produzida pela indústria farmacêutica e igual à produzida pelo corpo humano, não lesa o fígado. Ela nunca é administrada via oral. As vias são intramuscular, transdérmica (através da pele) e sublingual (não disponível no Brasil).
Os anabolizantes
Os esteroides anabolizantes talvez tenham nascido dentro de uma ideia: uma substância que aumente a força muscular sem causar modificações masculinas. Estas não são desejáveis para as pessoas cis femininas e desnecessárias para as cisgêneres masculinas.
Sâo substâncias muito populares em alguns meios. As estatísticas, imperfeitas, sugerem que 3,3% da população seja usuária ocasional ou frequente. Entre os que praticam esportes de forma recreacional, 18,4%; entre pessoas que participam de competições, 13,4%; entre pessoas privadas da liberdade, 12,4%; entre dependentes químicos, 8%; e 2,3% entre estudantes do ensino médio. Não por acaso, pessoas masculinas usam mais que as femininas (6,4% contra 1,6%).
O uso de anabolizantes têm um aspecto de dependência. Até 57% das pessoas que usam se tornam dependentes deles, e entre elas há abuso de outras substâncias: álcool, nicotina, cocaína.
E qual é o problema?
O uso dos esteroides anabolizantes se sustenta através de uma fake. Ele aumentaria a força muscular e o desempenho físico de modo a não ser necessário maior esforço físico. Ou, traria ganhos não possíveis sem o uso deles. Não há nenhuma comprovação científica que sustente esta ilusão. É a mesma fantasia que levou pessoas a usar cloroquina para tratar covid-19 ou a não vacinar porque vacinas matam.
A dependência de anabolizantes parece ocorrer por alterações em regiões do cérebro – não é pelo simples “prazer”, mas por lesão no corpo.
Diferente do uso de testosterona em doses adequadas (incluindo o uso por pessoas transmasculinas), anabolizantes causam lesão ao fígado, comportamento agressivo e suicida, depressão. Aumentam as chances da pessoa que usa se envolver em crimes.
Não só o cérebro sofre alterações físicas. O coração também. Entre elas, morte das células cardíacas e mal funcionamento delas, com risco aumentado de arritmias cardíacas e morte súbita.
O uso dos anabolizantes dá 3x maior chance de óbito para pessoas jovens, quando comparadas a que não os utiliza.
O mito do endocrinologista esportivo
Entre as pessoas que usam é comum a crença de que uma especialidade, a endocrinologia esportiva, preveniria os riscos do uso de doses tóxicas dos anabolizantes. Esta especialidade não existe (confira a lista de especialidades médicas aqui). Quem se apresenta no exercício da medicina como especialista nesta área mente!
Estas pessoas com diploma de medicina defendem que os efeitos colaterais de doses tóxicas de anabolizantes seriam corrigidas pelo uso de outras. Pelo menos 6 outras medicações podem ser “prescritas”. Qual a evidência científica disto? Nenhuma!
Acompanhamento médico não impede que o efeito colateral aconteça. Apenas não demora a ser descoberto. E, no caso dos anabolizantes em doses tóxicas, muitos são irreversíveis.
Acompanhamento médico para uso de anabolizantes em doses tóxicas não dá resultados esperados, não dá segurança, não dá melhor qualidade de vida. Mas enriquece quem prescreve e quem vende. Talvez Joseph Mengele tivesse mais ética…