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Empoderamento

Por que há tão pouco arrependimento? pergunta ginecologista

Médica transgênera norte-americana fala sobre sua atuação profissional

Publicado em 09/05/2022

A ginecologista Marci L. Bowers se chamava Mark até os 40. Foi casado e é pai de três filhos. Figurou na lista dos “Melhores Médicos Norte-Americanos”, em 2002 e 2003. Até o presente já efetuou mais de 2 mil cirurgias de transgenitalizaçao. Atua gratuitamente na recuperação de mulheres submetidas à mutilação do clitóris. Quando entrevistada tinha 54 anos. Hoje, 63.

Concília Ortona / Centro de Bioética – Quando a senhora percebeu que era mulher, depois de viver por tantos anos como homem? Houve horas em que pensou: “posso manter-me como marido e pai, e continuar feliz?”  

Bowers– Sempre pensei em mim como do gênero feminino, mas não conseguia colocar isso em palavras. Naquele tempo, nos anos 60, nem sabíamos a maneira correta de chamar esse tipo de comportamento. Sentia-me esquisito, constrangido e sozinho em meus pensamentos. Bem que tentei dar um jeito de ser machão na adolescência. Mas a “persona masculina” simplesmente não se encaixava bem em mim.

De forma inconsciente, sabia da disforia de gênero o tempo todo. Muitas das minhas memórias mais antigas e pungentes vinculam-se ao travestismo. Por exemplo, lembro-me de minha mãe chorando, em 1963, porque o presidente Kennedy havia sido assassinado, e ficar mais assustada ainda ao deparar comigo, com cinco anos, com o vestido de chiffon amarelo da minha irmã.

Gostaria de ter feito a transição ao sair do ensino médio, aos 19 anos, mas faltavam coragem e dinheiro: o casamento e a chegada das crianças foram importantes em minha vida adulta, mas perpetuaram meu sacrifício por mais 21 anos, quando finalmente realizei meu destino como mulher. A verdade é que chegou a um ponto em que viver como homem parecia cada vez mais perigoso para a minha saúde mental.

Ortona / Cbio – Talvez por preconceito, no Brasil os transexuais parecem ter oportunidades profissionais restritas: vemos dançarinos, artistas, cabeleireiros, maquiadores, mas (muito) raramente médicos ou professores universitários. É o mesmo nos EUA?

Bowers – Nos EUA, houve um relaxamento dos papéis estipulados por gênero, masculino e feminino, refletindo os avanços sociais conseguidos pela população LGBT. A ideia de que alguém possa ser transexual e funcionar como advogado competente, médico, ou piloto de avião, reflete tal mudança de atitude.

Vinte anos atrás, isso seria inimaginável. Quem se classificasse como transgênero seria visto como mentalmente desequilibrado, na melhor das hipóteses, ou psicologicamente perturbado, na pior.

Ortona / Cbio – A senhora já foi considerada por seus pares do Conselho de Pesquisa Americano como um dos “Melhores Médicos da América”. A que atribui tal reconhecimento?

Bowers– Durante os vinte anos em que atuei como obstetra era visto como um profissional compassivo e carinhoso, e esta reputação permaneceu em meu trabalho atual, como cirurgiã especializada em transgenitalização.

Depois de ajudar cerca de 2.500 bebês a nascer, fiz meu último parto em 2007. Foi uma época maravilhosa. Sinto falta, principalmente, da intimidade do momento e da alegria de trazer o potencial humano ao mundo.

De certa forma, no entanto, mudar a genitália de alguém permite também uma espécie de renascimento para a verdade. Até agora realizei mais de 1.100 operações do sexo masculino para feminino e cerca de 250, do feminino para o masculino.

Ortona / Cbio – Falando sobre este assunto, já enfrentou algum conflito de interesses, por ser transexual e possibilitar mudança de sexo a outras pessoas? Do tipo, “será que minha experiência influenciou na decisão deste paciente”?

Bowers – Engraçado… Sabe que ninguém nunca havia me feito esta pergunta antes?

Sinceramente não enfrento nenhum conflito, pois estou no fim da engrenagem. Antes de chegar à cirurgia, os pacientes já vivenciaram todas as dúvidas e indefinições. Abriram o jogo com familiares e amigos, com psicólogos e psiquiatras. Além de terem usado hormônios do sexo oposto, durante, pelo menos, um ano.

De qualquer maneira, faço o papel de “advogado do diabo”, falando a respeito de prós e contras, voltando no tempo a respeito dos fatos que culminaram em sua decisão. Se ainda assim insistirem, estão prontos.

Ninguém nunca me acusou de haver interferido indevidamente, e quase nunca ouço algum paciente reclamando de que cometeu um erro. Na verdade, a pergunta mais fascinante talvez seja “por que há tão pouco arrependimento?”, que mostra o quanto o gênero é algo pessoal e, se estiver errado, impossível de se ignorar.

Ortona / Cbio – O que diria a colegas que alegam “objeção de consciência” à cirurgia de mudança de sexo, comparando-a à “mutilação”?

Bowers – Machos e fêmeas são biologicamente bem mais parecidos do que diferentes. Todos surgimos como embriões do sexo feminino, e os sinais biológicos e hormônios que alteram nossos caminhos na região genital são bem discretos. Na realidade, o que nos separa na infância são os limites trazidos pelas expectativas sociais em relação a meninos e meninas.

Além disso, há um grande número de bebês nascidos com condição intersexual, com genitália nem essencialmente masculina nem feminina. Como a sociedade se mantém desconfortável com algo que não seja estritamente masculino ou feminino, logo após o nascimento chamamos rapidamente especialistas, para suavizar essas – confusas – situações.

Assim, a partir de uma lógica biológica, pode-se ver porque faz tanto sentido oferecermos mudança de sexo, quando esta se traduz em melhoria da qualidade de vida. Transexuais são mais felizes após a transição – isso é fato. Comparar-se essa lógica a mutilação ou a fetiches referentes à amputação, corresponde a uma tática para assustar os desavisados.

É como alertar os pacientes de que a remoção do apêndice pode levar à doença de Alzheimer.

Ortona / Cbio – Já se sentiu discriminada por colegas ou pacientes?

Bowers – Se ocorrer alguma discriminação é idêntica àquela contra qualquer outra de nós, mulheres. Mas, pensando bem, médicas lidam com dificuldades específicas. Certa vez, paciente solicitou um “cirurgião de verdade”, enquanto lhe explicava detalhes da histerectomia. Da outra, me peguei usando mais calças e jaquetas, a fim de ganhar mais credibilidade profissional.

Recentemente fui apresentada por um colega como “Esta é a nossa médica transexual”. Já pensou como pareceria, se introduzisse alguém como “Este é o meu advogado judeu”. Ou: “Conheça o meu contador mexicano”. Ou: “Você vai adorar a comida preparada por nosso chef bissexual”.

Sim, enfrento mais tensões e desafios do que outros, em muitos aspectos. Mas, como profissional adequadamente remunerada, tive vantagens. Arcar com minha cirurgia foi uma. Seria bem mais difícil para um transgênero que vive nas ruas, ou que trabalha em uma oficina mecânica.

Ortona / Cbio – Por que decidiu ajudar, de graça, mulheres que passaram pela – terrível – experiência de amputação de clitóris?

Bowers – Em 2007, Nadine Gary, diretora da organização internacional Clitoraid, perguntou se queria aprender uma técnica desenvolvida em Paris por Pierre Foldes, para a reconstrução de clitóris mutilados por motivos culturais. Aceitei sem hesitar. É um pequeno sacrifício em repúdio a esse crime contra a humanidade.

Só anos mais tarde soube que mais de 30 ginecologistas haviam declinado. Existem céticos que duvidam da eficácia da operação. Mas absolutamente funciona, pois, na maioria das vezes, boa parte do órgão permanece sob a pele. Ao apelar à técnica, em parte, as mulheres pensam na função sexual. Só que, principalmente, querem recuperar a identidade perdida. Geralmente se sentem violadas, envergonhadas e diminuídas.

Ortona / Cbio – Como é sua relação com seus filhos? Hoje, a senhora diz preferir relacionamentos amorosos com mulheres, em vez de homens. Isso não leva a dúvidas de que sua essência continua sendo masculina?

Bowers – Meus filhos são fantásticos, A mais mais velha terminou a faculdade e a outra, se prepara para a escola de Medicina. Meu filho tem 17 anos, frequenta o ensino médio, e mora comigo. Felizmente, minha ex-esposa manteve-se como um grande apoio e amiga.

Depois da transição, eu saia exclusivamente com homens, e não tinha dificuldade em atraí-los. No entanto, com o tempo, descobri que faltava uma certa conexão emocional, pelo menos, em relação àqueles que conheci. Parecia ainda que se sentiam meio intimidados com a minha posição, como médica conhecida.

Seria melhor classificar-me como bissexual. A tal conexão emocional acontece atualmente com a mulher com quem vivo há cinco anos, que também é médica.

Fonte:

entrevista publicada em “Centro de Bioética do CREMESP“, em 12.01.13. Concilia Ortona é jornalista do Centro de Bioética do Cremesp, especialista em Bioética e mestre em Saúde Pública (USP). Para melhorar a leitura, pequenas alterações na pontuação foram executadas.

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