Entrevista

Rodrigo Faour resgata quatro décadas de história LGBTQIA+ em A Audácia dos Invertidos

Em A Audácia dos Invertidos, Rodrigo Faour reconstrói a trajetória de resistência e brilho da comunidade LGBTQIA+ carioca entre os anos 1950 e 1990, revelando bastidores, personagens e espaços que moldaram a história da diversidade no Brasil
06/11/2025 19:12
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(foto: Redes Sociais)

Noite de lançamento do livro A Audácia dos Invertidos, de Rodrigo Faour, no Teatro Rival Petrobras, no Rio de Janeiro


O jornalista, escritor, produtor musical e historiador Rodrigo Faour lançou recentemente o livro A Audácia dos Invertidos – As estratégias de sobrevivência e visibilidade LGBTI+ do Rio de Janeiro e sua importância no Brasil. A obra revisita a trajetória da comunidade LGBTQIA+ carioca entre os anos 1950 e 1990, revelando como artistas, militantes e anônimos desafiaram a repressão e criaram espaços de liberdade e expressão.

O lançamento aconteceu no Teatro Rival Petrobras, no Rio de Janeiro, com um show histórico que reuniu Ney Matogrosso, Zezé Motta, Alcione, Joanna, Eliana Pittman, Divina Valéria, Angelika Rawaxe, Suzy Brasil, entre muitos outros nomes icônicos.

Autor de títulos como História Sexual da MPB e História da Música Popular Brasileira Sem Preconceitos, Faour conversou com o Observatório G sobre o processo de criação da obra, o contexto histórico que ela aborda e a importância de resgatar a memória LGBTQIA+ do país.

Imagens do tradicional baile de travestis ilustram as páginas do livro A Audácia dos Invertidos. — Foto: Divulgação

Como nasceu a ideia de escrever A Audácia dos Invertidos?

A ideia surgiu durante a pandemia, em 2020. Comecei a publicar fotos antigas nas redes sociais, de lugares frequentados pela comunidade LGBTQIA+ quando me assumi, nos anos 1990. As reações foram imensas, muita gente compartilhou lembranças e histórias. Percebi que havia uma memória coletiva pouco registrada. A partir disso, organizei uma série de lives com nomes como Ney Matogrosso, Roberta Close, Edy Star, Suzy Brasil e Divina Valéria. O sucesso dessas conversas me levou a mudar o tema da minha tese de doutorado e mergulhar nesse universo fascinante.

Por que o recorte histórico entre 1950 e 1990?

A década de 1950 marca o início da visibilidade LGBTQIA+ no Rio, especialmente com o surgimento do Baile dos Travestis, no Teatro João Caetano. Já os anos 1990 representam uma transição, com o início da militância organizada, o enfrentamento da epidemia de Aids e o nascimento de uma consciência política mais estruturada. Esse intervalo permite observar como a comunidade se reinventou ao longo de quatro décadas de repressão, glamour e resistência.

Milton Cunha e Rose Bombom em registro de 1996. — Foto: Acervo Rodrigo Faour

Qual foi o impacto do episódio de Stonewall na cena brasileira?

O movimento de Stonewall, em 1969, inspirou o mundo, mas aqui o contexto era outro. Estávamos sob a ditadura militar, com censura e vigilância constante. O movimento gay brasileiro só começou a se articular no final da década de 1970, com o Lampião da Esquina e grupos pioneiros no Rio e em São Paulo. Ainda assim, o espírito de resistência e orgulho de Stonewall serviu como referência simbólica.

O livro descreve diversos espaços de sociabilidade LGBTQIA+ no Rio. Que importância eles tiveram?

Esses locais foram fundamentais. Além de servirem como refúgio, eram centros de convivência e criação cultural. A Lapa, Copacabana e o centro do Rio abrigavam cabarés, bares e teatros que reuniam artistas, transformistas e intelectuais. O Teatro Carlos Gomes, por exemplo, recebeu o concurso Miss Boneca Pop, criado por Luiz Garcia, que lotava plateias. Mesmo com as constantes batidas policiais, a comunidade se reorganizava e abria novos espaços. Era uma demonstração de coragem e criatividade.

Paulette Couto, funcionária travesti que construiu uma carreira de 30 anos no Banco do Brasil. — Foto: Acervo Rodrigo Faour

A arte transformista e o travestismo ganharam destaque nesse período. Como você analisa essa fase?

Foi uma época de ouro para o transformismo. As travestis e transformistas tinham uma presença marcante nos palcos e no carnaval. Rogéria e Valéria foram pioneiras ao trazer de Paris uma imagem glamourosa e libertária. Antes delas, nomes como Aymond, Ivaná e Sofia Loren já provocavam o público com performances ousadas. Esses shows, muitas vezes ignorados pela mídia tradicional, eram manifestações artísticas de alto nível e, ao mesmo tempo, atos de resistência.

Rodrigo Faour e Lorna Washington no Bar da Le Boy, em 1996. — Foto: Acervo Rodrigo Faour

Madame Satã é uma figura lendária e controversa. Como você o enxerga dentro dessa narrativa?

Madame Satã é essencial para compreender o início da resistência LGBTQIA+ no Brasil. Ele era um homem negro, pobre e homossexual que desafiou a sociedade de sua época. Embora tenha vivido à margem, foi um símbolo de enfrentamento. Quem o conheceu no fim da vida dizia que era generoso e pacato, mas sem perder a altivez. Sua história rompe com o estereótipo da fragilidade e reforça a imagem de uma comunidade corajosa e orgulhosa de si.

Há ainda lugares da época que podem ser visitados hoje?

Muito poucos. O único que sobrevive é a boate La Cueva, em Copacabana, aberta em 1964. É um verdadeiro museu vivo. Além dela, há espaços públicos como a Cinelândia, a Praça Tiradentes e trechos de Copacabana e Ipanema, que guardam a memória da convivência e da resistência LGBTQIA+.

O multiartista baiano Edy Star em registro de 1974. — Foto: Acervo Rodrigo Faour

Como se dava a militância nesse período?

A militância começou a se estruturar no final dos anos 1970, com grupos como o Triângulo Rosa, no Rio, e o Grupo Gay da Bahia, em Salvador. Mas a epidemia de Aids mudou tudo. A prioridade passou a ser salvar vidas. Militantes e artistas, como Cazuza, se tornaram vozes de conscientização e luta por políticas públicas. Foi um momento de grande mobilização e solidariedade.

Havia articulação entre artistas e militantes antes da primeira Parada do Orgulho no Rio?

Sim, mas de forma esparsa. Existiam coletivos e encontros pontuais. A virada aconteceu em 1995, com a primeira Parada e a conferência internacional da ILGA, organizadas pelo Grupo Arco-Íris. Esse evento consolidou a união entre arte, política e identidade. Foi um marco definitivo para o movimento LGBTQIA+ brasileiro, e é o ponto de partida do segundo volume que pretendo escrever, dedicado aos anos 1990.

Capa do livro A Audácia dos Invertidos, de Rodrigo Faour. — Foto: Reprodução

O que o leitor vai encontrar em A Audácia dos Invertidos?

É um livro de fôlego, com 540 páginas e 32 de fotos, publicado pela Editora Record. Ele custa R$ 159,90 e reúne relatos inéditos, documentos, e histórias de figuras conhecidas e anônimas. O texto é acessível e envolvente, com momentos de humor, emoção e reflexão. O título faz referência à “audácia”, gíria gay dos anos 1970, e a “invertidos”, termo pejorativo usado na época. A leitura provoca uma sensação de pertencimento e orgulho. É impossível terminar sem se reconhecer na coragem dessa gente que ousou viver, amar e existir, mesmo quando tudo parecia proibido.

📘 A Audácia dos Invertidos – As estratégias de sobrevivência e visibilidade LGBTI+ do Rio de Janeiro e sua importância no Brasil, de Rodrigo Faour

Editora Record | 540 páginas + 32 de ilustrações | R$ 159,90

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