Por André Junior
Henrique Lunardi é policial militar do município de Ituverava, e detém também o título de primeiro transsexual dentro da PM/SP. Henrique faz parte da corporação há alguns anos e antes mesmo de possuir documentos masculinos e socialmente assumir-se um homem trans, já trabalhava nas forças armadas do país. O policial afirma ser um elo de comunicação entre um sistema dominado por homens héteros e a comunidade LGBT no Brasil. Criticados por muitos ativistas da comunidade trans no Brasil – o embate entre os LGBT+ e a PM no país é histórico – dentre os motivos estão as perseguições durante a ditadura militar e os corriqueiros casos de agressões sem explicações, como por exemplo o espancamento do jovem youtube Guigo Kieras no carnaval. Fatos históricos e barreiras sociais precisam ser superadas e Henrique busca destacar-se nesta luta. Em entrevista exclusiva ao Observatório G, o policial nos dá novas informações de sua transformação e comenta o dia-a-dia de um policial no Brasil. Confira:
Com quantos anos você se descobriu um menino ou fora na fase adulta que se viu como homem?
Desde muito novo eu não me sentia confortável com meu corpo, eu acho que a pior época foi minha puberdade, quando o corpo começou a criar formas e curvas, mas quando jovem eu não entendia o motivo do desconforto, da disforia. Eu não sabia que havia uma definição que se encaixava exatamente para descrever como eu me sentia. Foi só depois de adulto que eu tive mais acesso sobre o assunto de pessoas transexuais.
O seu processo de transição aconteceu ao mesmo tempo que trabalhava na PM/SP ou ingressara anteriormente como uma mulher? Na verdade, como você gosta de explanar sobre isto – você já foi mulher algum dia ou sempre fora um homem, qual é a forma correta para se referir à transição?
Em 2014 eu prestei o concurso para o cargo de Soldado da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Em 2015 eu fui convocado para tomar posse. Durante todas as fases do concurso, eu fui reconhecido pela minha certidão de nascimento, onde constava gênero feminino. Até porque eu ainda não me identificava como um homem trans, eu não tinha muito conhecimento a respeito. Visualmente eu era uma mulher quando ingressei na corporação. Em 2016 tive mais acesso a informações sobre homens transexuais e resolvi procurar auxílio psicológico para lidar com as questões. Eu nunca me senti uma garota, mas por muito tempo eu fui quem eles disseram que eu era.
Quando você participou da seleção e como é a seleção para tornar-se um PM?
Em 2014 eu prestei o concurso público para o cargo de Soldado da Policia Militar do Estado de São Paulo. O concurso se divide nas seguintes fases: Prova Escrita, Prova de Condicionamento Físico, Exames de Saúde, Exames Psicológicos, Investigação Social, e Análise de Documentos e Títulos. O concurso ofertava duas mil vagas para serem preenchidas de ampla concorrência, sem distinção de gênero masculino ou feminino.
Em sua opinião, é fácil ou é difícil ser socialmente assumido como um homem trans dentro da polícia militar (local dominado por pessoas cis-héteros)?
Eu tive medo de levar a questão até para dentro da minha própria casa, não foi fácil levar a questão para dentro da instituição. Infelizmente transexuais são vistos na maioria das vezes de maneira marginalizada, desempenhando serviços informais, e eu tive essa visão por muito tempo, mas hoje eu consigo ver de maneira clara que as pessoas trans estão se inserindo cada vez mais no mercado de trabalho e ocupando lugares de grande relevância social, representando e demonstrando sua capacidade e profissionalismo que outrora não tiveram oportunidade de expor.
Dentro das forças armadas, além dos serviços os quais a população já sabe que existem, qual você gostaria de ressaltar – existem palestras ou discussões sobre casos e investigações entre os cabos da PM? Por exemplo, a homofobia, o preconceito, assédio sexual são assuntos plausíveis para a instituição?
A Instituição tem buscado formas de garantir que todos os policiais militares entendam e aprendam a lidar melhor em relação a esses assuntos, como por exemplo, utilizando de uma ferramenta interna a qual devemos mensalmente tomar ciência sobre os mais variados assuntos. Ferramenta esta, conhecida como Instrução Continuada do Comando (ICC). Em Outubro de 2014 pela Súmula de ICC Nº 212 a Instituição levou ao conhecimento dos Policiais Militares o Decreto Estadual Nº 55.588/10, e em Março de 2018 através da Súmula de ICC Nº 218 a Instituição trouxe a conhecimento o mesmo Decreto, além de explicar sobre identidade de gênero e citar a Lei Estadual nº 10.948/01 que proíbe a discriminação em razão da orientação sexual e da identidade de gênero e pune toda manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão LGBT no Estado de São Paulo.
Eu sou integrante de uma Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTI+ (RENOSP LGBTI) que luta contra a LGBTIfobia dentro e fora das instituições de segurança pública. Que tem por objetivo criar ações concretas que possam fomentar a garantia dos direitos e proteção das pessoas LGBTI+ no Brasil.
Como a homossexualidade e transexualidade é vista dentro de uma organização com a qual você trabalha? Você se sente confortável para dialogar com todos os colegas de trabalho ou como em toda esfera profissional, ainda é preciso haver avanços?
Pela minha experiência dentro da Instituição, pelas aulas que tive durante o curso de formação bem como as aulas de aperfeiçoamento profissional, posso dizer que a Polícia militar é legalista e preza pelo cumprimento das leis, porém, é preciso frisar que a policia militar é formada por pessoas da sociedade, e o preconceito ainda está enraizado nas pessoas. Não me sinto confortável para dialogar com todos meus colegas sobre a minha vida pessoal, assim como não me sinto confortável em dialogar com todas as pessoas fora do meu trabalho. Enquanto houver preconceito, haverá necessidade de avanços, porque temos que aprender a respeitar as particularidades de cada um, assim como deveres, todos temos direitos que são garantidos pela constituição.