"Não há uma primeira vez para entrar no armário; já nascemos lá dentro", diz Bruno Bimbi, autor do livro O fim do Armário

Fã e Bruno Bimbi (Divulgação)
Fã e Bruno Bimbi (Divulgação)

Por André Junior

Bruno Bimbi é argentino, naturalizado brasileiro, jornalista, doutor em Letras/Estudos da Linguagem (PUC-Rio) e escritor. Foi secretário de Imprensa e Relações Institucionais da Federação Argentina LGBT e um dos responsáveis da estratégia política que levou à aprovação do casamento igualitário na Argentina, primeiro país latino-americano a conquistar esse direito.

Pouco depois, enquanto cursava o doutorado no Brasil, foi um dos coordenadores da campanha pelo casamento igualitário no país. Morou no Rio de Janeiro por dez anos e foi correspondente no Brasil do canal Todo Noticias, um dos mais importantes da Argentina, e também coordenador político e legislativo do mandato do deputado federal Jean Wyllys

Atualmente Bimbi mora na Espanha e escreve para a web de Todo Noticias e para o New York Times. O fim do Armário é seu segundo livro, o primeiro foi Casamento Igualitário. Sua obra foi publicada em solos brasileiro no ano de 2018 e segue agora para estreias no México e Portugal. Em entrevista ao Observatório G, Bruno Bimbi discursa sobre a produção do livro e a atual situação política do Brasil. O livro pode ser comprado online.

Bruno, o que te levou a escrever O Fim do Armário?

“Faz mais de 10 anos que eu escrevo para diferentes veículos sobre a vida das pessoas LGBT: crônicas, entrevistas, matérias investigativas, colunas de opinião e textos narrativos que falam sobre o nosso mundo. A ideia do livro foi fazer uma pequena seleção de textos, atualizá-los, em alguns casos reescrevê-los ou unir em um único texto vários artigos que tratavam do mesmo assunto, escrever textos novos que completassem o que faltava e organizar tudo isso como um conjunto atualizado e coerente, em que o tema é o fim do armário, como uma metáfora que tenta explicar como é a vida das pessoas LGBT no século XXI. 

O livro explica muitas coisas de forma didática e, sempre que possível, divertida, sem perder a seriedade. Para isso, tem desde textos pedagógicos até crônicas, histórias de vida, entrevistas, e inclusive alguns capítulos que respondem de forma direta a muitos dos mitos e preconceitos que existem sobre a homossexualidade, a bissexualidade e a transgeneridade.

É um livro para pessoas de qualquer orientação sexual ou identidade de gênero, por isso não pressupõe que nada seja óbvio e não quer julgar o leitor, mas dialogar com ele e contar para ele muitas coisas que talvez não saiba sobre nossa vida, sobre a forma em que a sociedade trata as pessoas LGBT em diversas partes do mundo, mas também sobre coisas do quotidiano, da nossa vida”.

Por que esse título?

“‘O Fim do Armário” é, ao mesmo tempo, uma constatação e uma expressão de desejos. Uma constatação porque, de fato, neste último século, pela primeira vez na história, a relação do resto da sociedade com os LGBT está começando a mudar. Se a gente fizesse um exercício de ficção científica, como nos filmes sobre viagens no tempo, levando um adolescente gay desta época para 1919 e trazendo um adolescente gay daquele ano para os nossos dias, ambos ficariam chocados com as mudanças na sociabilidade homossexual. Mas isso não aconteceria se intercambiássemos o adolescente gay de 1919 com outro de 1819, porque naquele período não mudou praticamente nada. 

A repressão, o preconceito, a falta de direitos civis, o silêncio, tudo permaneceu igual. Então, tem alguma coisa acontecendo pela primeira vez e temos o privilégio de viver nesta época em a história começou a andar. Em muitos países, hoje existe casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, as pessoas trans podem mudar legalmente de gênero nos documentos e há muitas pessoas LGBT fora do armário nas mais diversas profissões, inclusive na política. Aqui na Espanha, o ministro do Interior é casado com outro homem, e quase ninguém se importa com isso. 

Mas também há mudanças na vida quotidiana. Hoje, em muitos países, um adolescente gay pode levar o namorado para jantar na casa dos pais ou ir numa boate com ele e seus amigos hétero, o que algumas décadas atrás seria inimaginável. Porém, ao mesmo tempo, essa mudança é desigual. Há regiões inteiras do mundo onde a situação está ainda pior que um século atrás e o livro também fala sobre os discursos políticos e religiosos que provocam isso. Notadamente, o Oriente Médio, com a única exceção de Israel; a maior parte da África, com a exceção da África do Sul, e boa parte da Ásia, especialmente as antigas repúblicas soviéticas, são um inferno para as pessoas LGBT. Por isso, também, o título do livro é uma expressão de desejos, a ideia de que essa mudança aconteça mais rápido e inclua os lugares do mundo onde ainda o armário é obrigatório.

Existem países onde você pode se casar, adotar filhos, viver abertamente sua sexualidade e até ser primeiro-ministro ou presidente sendo gay. E existem outros onde, por ser gay, apenas por isso, você pode ser preso ou condenado à pena de morte. O livro traz artigos que explicam tudo isso, mas também muitas histórias de vida, de diferentes lugares do mundo”. 

Você afirma que um homossexual já nasce no armário pois assim que sai do útero da mãe já se presume a heterossexualidade do filho. Por qual motivo você acredita que isso ainda ocorra?

Eu digo no livro que não há uma primeira vez para entrar no armário; já nascemos lá dentro. Quando ainda não sabemos – e nem teríamos como saber, porque a sexualidade ainda não faz parte das nossas preocupações e não conhecemos as palavras necessárias para falar dela –, já há um armário invisível construído à nossa volta. A suposição é o ponto de partida: toda família pressupõe que esse bebê será um adulto heterossexual e o educa para isso.

O armário da nossa infância vem com cores, jogos, brinquedos, contos infantis com príncipe e princesa, expectativas e planos dos nossos pais, amigos, professores e um tio ou tia que em toda festa de aniversário nos pergunta se já temos namorada, porque é óbvio que não existe outra possibilidade. As pessoas partem da ideia equivocada de que qualquer informação que seu filho possa receber sobre a homossexualidade – mesmo que esta palavra não seja sequer mencionada – pode desviá-lo do caminho “natural”, gerar uma dúvida, influenciá-lo, corrompê-lo.

Mas a coisa não é assim. Em primeiro lugar, porque ser gay é tão normal, natural e saudável quanto ser hétero, apenas minoritário, como ser ruivo, canhoto ou ter olhos azuis. Segundo, porque gays e lésbicas não nascem adultos: nós também tivemos infância! E durante toda a nossa infância fomos sistematicamente “influenciados” pela constante “propaganda” heterossexual, que incluía o “exemplo” da maioria dos nossos familiares e amigos, os personagens dos contos infantis, os desenhos animados, os videogames, o cinema, a música, o teatro, a televisão. E, no entanto, todo esse silêncio sobre a diversidade sexual e essa educação heteronormativa sistemática e cotidiana – e os preconceitos, piadas homofóbicas, caçoadas, ofensas, bullying, e às vezes a violência física que presenciávamos ou, a partir de certa idade, sofríamos – não nos “tornaram” heterossexuais.

Fizeram-nos sofrer, apenas, mas não nos fizeram mudar. Não poderiam, porque a orientação sexual não se aprende, não se imita e não muda, é a que é e não vai ser outra. Porém, a pressuposição das nossas famílias, que têm certeza de que seus filhos serão héteros,transforma-se num destino que nós assumimos como meta, aquilo que vamos ser quando formos grandes, porque isso nos ensinaram. E quando descobrimos que sentimos outra coisa, fica bem difícil. De fato, o bullying homofóbico começa antes de podermos entendê-lo.

No momento em que escutamos o primeiro insulto homofóbico, não sabíamos que éramos gays, nem o que era ser gay, mas começamos a intuir que, se fôssemos isso, nos daríamos mal. Que os outros não iam gostar, principalmente nossa família. E é assim que, sem nos darmos conta, já estamos no armário, presos. O livro tenta ajudar a entender por que isso acontece e como sair.

O livro relata acontecimentos ou nos apresenta também formas de lidar com o preconceito?

“Ambas as coisas. O livro tem capítulos que são explicativos, por exemplo, um capítulo que analisa o que a Igreja católica e os pastores evengélicos fundamentalistas dizem que a Bíblia diz sobre a homossexualidade, e, citando passagens e estudando seu significado, mostra que é mentira, que a Bíblia não diz nada disso. Eu sou ateu, mas entendo que a Bíblia é importante para muita gente e que muitos dos preconceitos que existem na sociedade vêm de uma má interpretação desse texto.

Junto a esse tipo de capítulos, mais analíticos, pedagógicos, tem outros que são pura crônica, relato histórico –por exemplo, sobre a vida de Alan Turing, ou sobre a rebelião de Stonewall–, mas também histórias de vida de gente comum, como um capítulo que fala sobre um gay da Coréia do Norte que fugiu do país, arriscando a vida, porque não suportava mais a opressão desse regime. 

O livro tem entrevistas, dados, números, pesquisas, relatos e até alguns poucos textos mais pessoais. E tudo isso está organizado de modo que não seja apenas um amontoado de coisas diferentes, mas uma sequência que funciona junta, ordenada, para explicar algo”.

O Fim do Armário tem o intuito de libertar o leitor ou politiza-lo na luta contra a homofobia?

“Talvez ambas as coisas, depende muito do leitor. O livro pode servir para esse adolescente gay ou essa adolescente lésbica que não sabe como falar com os pais. Pode servir para esses pais que não sabem como lidar com a homossexualidade do filho. Pode servir para o professor que tem uma aluna trans. Pode servir para uma pessoa heterossexual e cisgênero que quer entender coisas sobre nosso mundo, aprender, tirar dúvidas.

Pode servir para o ativista que quer uma coleção de argumentos para defender seus direitos de forma mais profissional, com mais informação e respostas para os preconceitos dos outros.

Pode servir para o político que quer deixar de ser um idiota e não falar mais besteira, ou para aquele que é a favor dos direitos LGBT, mas não sabe muito sobre o tema e precisa de argumentos. Pode servir para aquela pessoa que é gay e evangélica e não sabe como conciliar uma coisa com a outra. Enfim, acho que muita gente pode aproveitar o livro de formas diferentes”. 

Você vive na Espanha, quais diferenças são presentes no cotidiano que não existem no Brasil? O preconceito é maior ou menor por aí?

“A Espanha foi um dos primeiros países do mundo a aprovar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, em 2005. Eu fui um dos responsáveis da campanha pelo casamento igualitário na Argentina e no Brasil e ajudei a organizá-la no Equador, e a minha maior inspiração sempre foi a experiência espanhola, que aprendi graças ao meu amigo Pedro Zerolo, a quem dedico o livro. Em 2013, uma pesquisa internacional do Pew Research Center mostrou que a Espanha era o país com maior aceitação da homossexualidade no mundo: 88% das pessoas responderam que a homossexualidade deveria ser aceita pela sociedade.

No Brasil, a aceitação também foi alta, 60%, mas a rejeição foi de 36%, contra 11% da Espanha. É uma parcela muito grande da sociedade que rejeita os homossexuais. Inclusive em um tema mais difícil, porque existe mais desinformação e pânico moral, como é a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, na Espanha a aceitação era de 73,8% em 2016, de acordo com a European Social Survery.

É claro que há setores homofóbicos muito violentos e até partidos políticos homofóbicos, como em todos os países, mas aqui são claramente uma minoria. Quase todo o mundo tem amigos gays ou amigas lésbicas e as pessoas LGBT de modo geral podem viver sua sexualidade sem se esconder no armário. Eu estou morando em Barcelona e aqui a prefeita é bissexual, o político que foi candidato a prefeito do PSOE é gay e o líder estadual desse partido na Catalunha também. E isso não foi um tema na campanha, ninguém falava a respeito”.

O processo de criação de O Fim do Armário aconteceu no Brasil ou Espanha?

“No Brasil. A edição argentina foi publicada em 2017 e as edições do Brasil e do Peru, em 2018, quando eu ainda estava morando no Rio de Janeiro. Nos próximos meses, o livro vai ser publicado na Espanha, no México e em Portugal. E, claro, o fato de eu ter escrito o livro no Brasil fez com que ele tivesse muita informação sobre o país. Eu morei dez anos no Rio de Janeiro, fui correspondente do principal canal de notícias da Argentina e trabalhei como assessor do deputado federal Jean Wyllys, que é meu amigo. O Jean aparece no livro muitas vezes, eu tenho uma enorme admiração por ele e uma tristeza muito grande por tudo o que ele sofreu e ainda sofre.

O Brasil perdeu o melhor parlamentar que tinha nesse Congresso, um cara íntegro, honesto, inteligente e corajoso. É assustador o que está acontecendo no país. Eu comecei a pensar em ir embora quando mataram a Marielle e tomei a decisão final depois da vitória do Bolsonaro. Não quero viver num país onde o presidente diz que prefere um filho morto a um filho gay, onde os jornalistas e os opositores são difamados com fake News e ameaçados de morte e o gabinete é formado por ministros que parecem saídos de um hospício.

Esse governo é a representação de tudo o que há de ruim nesse mundo: tem fascistas, lunáticos, milicianos, fundamentalistas, corruptos, imbecis sem qualquer qualificação para o cargo. É um pesadelo”.

O Brasil acabou de criminalizar a homofobia, na Espanha existe alguma lei que proteja a comunidade LGBT como esta que fora homologada pelo STF?

“Existem muitas leis na Espanha, tanto no nível estatal como regional e municipal. Mas eu tenho uma opinião crítica sobre a criminalização da homofobia. Não acho que seja o caminho. Há uma realidade terrível que é apresentada como justificativa da necessidade de criminalizar a homofobia: o Brasil é campeão no assassinato de pessoas LGBT em crimes de ódio, entre 300 e 400 por ano. Isso é brutal, horrível. Mas o assassinato, as lesões, as ameaças, o estupro e outros atos violentos que são praticados nesses casos, motivados pela homofobia, já são crimes previstos na legislação e com penas muito duras, o que não impede que aconteçam. Um novo tipo penal não vai solucionar isso. Por outro lado, a discriminação e as injúrias homofóbicas, quer dizer, a homofobia sem violência, não deveria ser tratada como caso de polícia.

A gente sabe como o sistema penal funciona: quem vai ser preso é o menino negro da favela que xingou de viado um gay branco de classe média. Silas Malafaia não vai ser preso. Eu sou amigo do advogado Paulo Iotti, quem fez uma defesa brilhante da criminalização na audiência do STF. Ele está coberto de razão quando diz que a homofobia deve receber o mesmo tratamento legal que o racismo, porque não pode haver hierarquias entre esses dois fenômenos. Nesse ponto eu concordo e acho que o Supremo tomou a decisão correta do ponto de vista jurídico. Porém, do ponto de vista da política pública, eu não acho que essa solução seja eficaz, nem para a homofobia, nem para o racismo. Sou partidário de focar na garantia de direitos, na igualdade perante a lei e na educação.

Nos países que foram nessa direção, aprovando leis que garantiram todos os direitos civis, educando contra o preconceito nas escolas e eliminando todas as barreiras, para que o armário deixe de ser compulsório, a violência homofóbica caiu drasticamente, assim como o preconceito. Eu prefiro fazer isso, que é mais difícil que usar a lei penal, mas é bem melhor”.


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