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Associações defendem direitos de crianças e adolescentes no STF contra lei que censura a Parada LGBTQIA+

Thales Antico Coimbra é advogado e mestre pela USP (OAB/SP 346.804)

Publicado em 12/01/2024
Fonte: portal Oajuricaba

Em 5 de outubro de 2023, a Assembleia Legislativa do Amazonas – ALAM aprovou a Lei nº 6.469/2023, proposta pelo Deputado Estadual Delegado Péricles (Partido Liberal, o mesmo do ex-presidente Jair Bolsonaro). A norma proíbe a participação de crianças e adolescentes nas Paradas do Orgulho LGBTQIAPN+ do Estado do Amazonas, com fundamento no artigo 74 do Estatuto da Criança e do Adolescente, isto é, com o argumento de que está fazendo uma espécie de classificação indicativa. A norma estabelece, ainda, multa de R$ 10 (dez) mil por hora de exposição ao evento, cuja responsabilidade tem natureza solidária, sendo repartida entre pais, realizadores e patrocinadores, como forma de desestimular o descumprimento. Na prática, é verdadeira censura prévia ao direito de crianças e adolescentes participarem das Paradas.

Diante disso, em 4 de janeiro de 2024, a Aliança Nacional LGBTI+ em parceria com a Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas – ABRAFH apresentaram a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 7584 perante o Supremo Tribunal Federal, em que buscam a declaração da inconstitucionalidade da lei amazonense – em outras palavras, que seja anulada. Considerando-se que existe um risco de danos graves caso se aguarde até a conclusão final do trâmite da ação judicial, os autores pediram uma decisão urgente de caráter provisório, chamada de “pedido liminar”, de modo que o ministro responsável pelo caso (relator) pode individualmente suspender os efeitos da Lei nº 6.469/2023 se assim entender pertinente. Ao mesmo tempo, o Partido Democrático Trabalhista – PDT apresentou a ADI nº 7585, tendo por objetivo atacar a mesma norma em questão. Em ambos os casos, o relator é o ministro Gilmar Mendes.

Antes de analisar as chances de sucesso da ação, vamos nos debruçar sobre as razões e os argumentos que fundamentam o pedido. Na ADI nº 7584, defende-se a tese de que há um vício formal na lei amazonense, pois o artigo 24, inciso XV, da Constituição Federal de 1988 fixa que compete concorrentemente à União, aos Estados e aos Municípios legislar sobre a proteção das crianças e dos adolescentes. Ocorre que a Assembleia Legislativa do Amazonas não teria legislado para proteger crianças e adolescentes, mas para atacá-las. O argumento das associações, confesso, me parece mais material do que formal. Argumentos formais costumam ter muita força em ações de controle concentrado de constitucionalidade, pois não dão muita margem de interpretação. A título exemplificativo, é de competência exclusiva da União criar leis sobre direito civil, comercial, penal e processual, entre outros (art. 22, I, CF/1988). Os Estados e os Municípios não podem criar leis que fixem penas de prisão, por exemplo, pois estariam invadindo a competência que é exclusiva do Congresso Nacional. No caso da competência sobre proteção de crianças e adolescentes, a Constituição Federal afirma que ela é concorrente, ou seja, qualquer ente da federação pode criar leis para tratar do tema. É pouco convincente a interpretação de que a legislação, tal como aprovada, configura um ataque, não uma proteção, e, por isso, seria uma inconstitucionalidade formal – este parece, isso sim, um argumento para uma inconstitucionalidade material.

A ADI nº 7484 apresenta uma série de argumentos pela inconstitucionalidade material, estes sim com maior poder de convencimento, e que também se encontram na ADI nº 7485 (do PDT). É muito provável que tenha ocorrido um diálogo entre as partes a fim de que esse esforço conjunto configurasse uma forma de mobilização ou pressão popular, que sensibilize o ministro relator da importância e da urgência do tema, ao invés de ingressar apenas com uma ação em nome de três autores. Assim, em nada desmerece a causa que os argumentos tenham se repetido. Pelo contrário, indica um consenso dentro da comunidade jurídica a respeito da abordagem do problema real.

Entre os argumentos, destaco primeiro que a norma amazonense viola a dignidade da pessoa humana, que constitui um dos objetivos da República Brasileira (art. 1º, III, CF/1988). Aqui foram transcritos trechos dos pareceres das Comissões das ALAM que aprovaram a Lei nº 6.469/2023, nos quais ficou evidente um pressuposto de que existe uma sexualidade “correta” e outra “errônea” (os parlamentares usaram exatamente esta palavra):

“O projeto de lei em análise encontra potencial fundamentação jurídica no art. 227 da Constituição Federal/88, ao proteger crianças e adolescentes dos efeitos nefastos que estarão expostos a um evento deste porte, tendo em vista a disseminação de ideias e imagens errôneas sobre a temática concernente ao gênero e à sexualidade para um público que é tão suscetível devido à imaturidade peculiar à condição de pessoa em formação, incentivando a adoção de comportamentos, práticas e decisões irreversíveis nos campos afetivo, emocional e sexual.

Ocorre que, a partir do momento em que se vive numa democracia constitucional pluralista, como é o Brasil (art. 1º, V, CF/1988), isso implica em múltiplas formas de vida, diferentes orientações sexuais e identidades de gênero, sendo vedada qualquer hierarquia entre elas. Ao falar, portanto, em certo e errado, o Estado do Amazonas encampa uma forma de vida particular de um grupo humano cisgênero e heterossexual como se fosse a forma de vida universal e pública, de todas as pessoas. Essa hierarquização, ademais, nega a existência de crianças e adolescentes que possam experimentar orientações sexuais e identidades de gênero diferentes da norma cisgênera e heterossexista, como se todas as crianças nascessem cisgêneras e heterossexuais. A realidade, porém, derruba essa falácia, quando vemos adultos que cresceram sob rígida criação conservadora e religiosa e que, mesmo assim, se desenvolvem como adultos LGBTQIA+ saudáveis. Do mesmo modo, pais LGBTQIA+ podem perfeitamente criar filhos que se tornem adultos cisgêneros e heterossexuais. Assim, ceifar a possibilidade de que crianças e adolescentes vivenciem um ambiente de pluralismo político e de diversidade de manifestação de orientações sexuais e de identidades de gênero poderia ser equiparado à eugenia, na medida em que busca apagar não apenas a existência das pessoas LGBTQIA+, mas também a possibilidade de transmitir a memória da nossa comunidade. 

Além disso, a lei amazonense ora atacada viola o princípio constitucional não discriminação e da liberdade (respectivamente, arts. 3º, IV, e 5º, caput, CF/1988). Aqui, os autores fazem um paralelo entre as Paradas do Orgulho com outras manifestações culturais brasileiras, como o Carnaval. Afinal, a nudez está presente nele também, no entanto não suscita a ira e a perseguição de setores organizados dos reacionários. A nudez, quando é cisgênera e heteronormativa, acaba sendo naturalizada. Já quando reflete corpos fora do padrão, quando é uma nudez transexual, travesti ou homossexual, é tida como pornográfica, violenta, ideológica e, portanto, escandaliza a moral e os bons costumes. Essa hierarquização das nudezes, agora revelada, evidencia, novamente, que o discurso de proteção da infância e da adolescência, na realidade, busca apenas escamotear o ódio homotransfóbico. Além disso, os autores defendem a noção de que não se pode restringir direitos coletivos a partir de um receio abstrato de danos hipotéticos e eventuais a crianças e adolescentes (“Ah, e se talvez alguma criança for exposta a ver uma pessoa nua, então todas as crianças estão proibidas de ir à Parada”). E, ainda que um dano concreto venha a ser causado, ele deve ser individualizado, com a responsabilização da parte envolvida, garantindo-se a oportunidade de ampla defesa e contraditório, mas nunca deve-se usar o episódio como forma de justificar eventual punição da coletividade de crianças e adolescentes. Como exemplo, as entidades autoras citaram o denúncias de líderes religiosos que cometeram atos de abuso sexual, os quais chegaram ao conhecimento da mídia, mas que nunca justificaram, em razão disso, a proibição da participação de crianças e adolescentes de eventos públicos, como a Sexta-feira Santa, por exemplo.

Outros princípios constitucionais violados pela Lei nº 6.469/2023, segundo as autoras das ADIs nº 7.584/7.585 são os direitos à livre reunião pacífica (art. 5º, XVI) e de associação (XVII). Aqui há argumentos formais e materiais. Primeiro, por se tratarem de direitos garantidos por uma norma de hierarquia constitucional, eles só poderiam ser restringidos por outra da mesma estatura, nunca por uma de hierarquia inferior (no caso, a lei amazonense é uma lei ordinária, portanto sem força para restringir direitos garantidos em norma de hierarquia constitucional). Já passando para os argumentos substantivos ou materiais, podemos nos lembrar que a Constituição Federal de 1988 proíbe a censura prévia, e, em caso de abuso de direito, é resguardada apreciação pelo Judiciário, podendo ser fixada indenização razoável, a fim de reparar os danos cabíveis. A norma amazonense, no entanto, inverte essa lógica: para ela, a regra geral é a censura e, excepcionalmente, permite-se a participação de crianças e adolescentes, a depender de autorização judicial, fazendo-se do Judiciário espécie de cartório autorizador. Se a Constituição não condiciona o direito à liberdade de expressão a fatores como idade, tampouco à autorização de nenhuma autoridade pública, a conclusão a que se chega é de que não cabe ao legislador estadual criar essas condicionantes – que, pior, no caso são verdadeiras proibições. Neste aspecto, chamou minha atenção também a contribuição da ADI nº 7.585, que argumenta que a Lei nº 6.469/2023 viola os direitos constitucionais de reunião e de associação das famílias LGBTQIA+, as quais possam desejar frequentar as Paradas do Orgulho, por exemplo: pais com seus filhos, a fim de que eles saibam que seu arranjo familiar é perfeitamente normal; igualmente, adolescentes LGBQIA+ também podem ter vontade de comparecer às Paradas e ir sozinhos, quando não têm apoio de suas famílias, mas também podem comparecer com suas redes de apoio, tais como amigos, que constituem uma forma de família ampliada. Assim, negar o direito de participar dessas manifestações políticas configura uma forma de impedir o exercício da cidadania de tais pessoas, impedindo-as de defenderem seus direitos, suas pautas políticas e de se sentirem representadas política e culturalmente em artistas, cantores e palavras de ordem.

Entre os últimos argumentos substantivos apresentados pelas autoras, estava o caráter racista homotransfóbico da legislação, amparado na interpretação de homotransfobia dado pelo STF no julgamento da ADO 26, em que o Tribunal equiparou ao crime de racismo a discriminação homotransfóbica. O pânico moral e a desinformação a respeito das Paradas do Orgulho LGBTQIAPN+ tem como consequência o aumento do registro de violência contra a nossa comunidade, inclusive da violência institucional, por exemplo a aprovação de projetos de leis como esta que estamos analisando. A Lei nº 6.469/2023 também viola a garantia constitucional da liberdade de expressão (art. 5º, IX, CF/1988), que compreende não apenas a liberdade de se expressar, mas também a liberdade de ser exposto a diferentes perspectivas e ideias. Na ADI nº 7.585 também foi apresentado o argumento de que a lei amazonense viola o artigo 226, caput, da CF/1988, que fixa o dever estatal de proteger todas as famílias, bem como não discriminar nenhuma delas, entendimento esse estabelecido a partir da ADPF 132 (equiparação entre as uniões estáveis homoafetivas e as uniões heteroafetivas).

Como se vê, há inúmeros argumentos convincentes a favor do pedido para que a Lei amazonense nº 6.469/2023 seja declarada inconstitucional. O relator do caso, Ministro Gilmar Mendes é um ministro com histórico relativamente liberal em matéria de direitos fundamentais, isto é, aqueles direitos que são considerados liberdades individuais mínimas para o exercício da cidadania. Um caso que seria elucidativo para tentar prever a posição do ministro seria o precedente das Marchas da Maconha (ADPF 187), no entanto ele não participou do julgamento, pois estava ausente. Ainda assim, Gilmar Mendes votou a favor da equiparação da homotransfobia ao crime de racismo em 2019; da liberação da doação de sangue por homens que fazem sexo com homens em 2020; e da descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal em 2023. Alguns votos dele foram intermediários, por exemplo na questão da liberação de pesquisas com células tronco, no caso da descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, no caso da equiparação dos direitos entre casais do mesmo sexo e casais heterossexuais e no caso da retificação de registro por transexuais sem cirurgia. Ainda assim, acredito que o tema não é juridicamente polêmico e, portanto, pode ser enfrentado com tranquilidade pelo ministro, inclusive com concessão do pedido de urgência pleiteado, afinal em janeiro deve ocorrer a Marcha do Orgulho Trans. O que existe é uma tentativa de intimidar famílias LGBQIA+, o Poder Público e marcadas patrocinadoras, inclusive que precisam se programar com meses de antecedência para que uma festa do tamanho da Parada ocorra de maneira organizada e segura para todos os presentes.

Tendo em vista essa convicção – da ausência de uma divergência jurídica consistente – me deparo com algumas considerações de ordem política. A impressão que a aprovação de uma legislação dessa ordem passa é a seguinte. Parlamentares conservadores e reacionários estão absolutamente cientes de que essa norma será declarada inconstitucional pelo STF, mas se dão o trabalho de aprovarem-na mesmo assim por uma série de motivos. Primeiro, ao fazê-lo, obrigam a nossa comunidade a recorrer ao STF, dependendo da sorte da distribuição do processo e da boa vontade do ministro sorteado, que concederá, ou não, uma liminar, quando entender que se trata do momento adequado. Considerando o momento atual de desgaste do STF junto ao Congresso Nacional – um cenário que, em 2022, foram pautados e aprovados Projetos de Emenda Constitucional que ameaçam cercear o poder de conceder liminar monocrática dos ministros, bem como que tendiam a criar mandatos, extinguindo a garantia constitucional de vitaliciedade da função – está cada vez mais delicado para o Supremo adotar uma postura, diga-se, pró-ativa (não confundir com “ativismo judicial”), de confronto com o Poder Legislativo. Por se tratar de uma legislação estadual, não vejo maiores complicações: acredito que a Lei amazonense nº 6.469/2023 será declarada inconstitucional, sim. No entanto, se esse cenário se repetir – e deve se repetir, sim, ao longo do ano – em nível federal, talvez os ânimos fiquem mais acirrados para que o Supremo “compre brigas”, ou decida a dedo quais brigas escolherá comprar.


Thales Antico Coimbra é advogado e mestre em direito pela Universidade de São Paulo (OAB/SP 346.804); estuda filosofia na Universidade Federal de São Paulo.

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