Símbolo do orgulho não binário, representando identidades que não se encaixam exclusivamente no feminino ou masculino.
Em julho, o Cine Diversidade BH colocou a visibilidade não-binária no centro da tela e da reflexão coletiva; e fez disso um gesto de potência. Com a exibição dos curtas “Manifesto Não-Binário pela Desistência do Gênero”, de Zaíra Magalhães, e “Se Eu Tô Aqui É Por Mistério”, de Clari Ribeiro, além da apresentação da exposição “Cuir Okupa Calle” no telão durante o debate, o evento provocou, desconcertou e emocionou. Realizado pelo CRP-MG, o Cine Diversidade mostrou mais uma vez que a arte é espaço legítimo para a construção de novos mundos, onde corpos dissidentes não apenas cabem, mas brilham.
Dirigido por Zaíra Magalhães, o curta é mais que um manifesto, é um corpo que performa sua própria linguagem: fragmentada, híbrida e viva. A estética é quebrada, como a própria experiência de ser não-binárie no Brasil: feita de pausas, silêncios, ruídos e reinvenções. As palavras falam, mas o corpo grita. Não pede permissão, existe.
Inspirado também pela obra Primavera Não Binárie e em diálogo com a performance de Jup do Bairro, o curta questiona: o que pode um corpo sem juízo? E mais: desistir do gênero é liberdade ou uma solidão performativa? A recusa da norma pode parecer libertadora, mas muitas vezes vem acompanhada de dor, desamparo e cansaço. Ainda assim, essa “desistência” carrega a potência de criar algo novo. É gesto político, não fuga. É denúncia da imposição, não rejeição da convivência.
Desistir do gênero, aqui, é se tornar monstro, é romper o binarismo cis-hétero-normativo domesticador de corpos, nomes e destinos. É um ato místico, como quebrar um feitiço antigo. O gênero nos foi dado como dogma. Recusá-lo é desafiar uma fé. E o curta nos pergunta: o que emerge quando se rompe o feitiço?
A obra de Clari Ribeiro não entrega respostas: ela é mistério, estética e política. Um curta de ficção científica que especula futuros travestis e não-bináries, onde as personagens rompem com a “Ordem da Verdade”, uma clara alusão ao autoritarismo, aos fundamentalismos contemporâneos e às estruturas que ainda hoje tentam silenciar corpos dissidentes.
A estética do filme é disruptiva. Entre o místico e o distópico, as personagens são bruxas trans, símbolos de uma resistência que é ancestral e futurista ao mesmo tempo. São corpos mágicos e tecnológicos, que só sobrevivem porque se reinventam. A própria linguagem do filme não-linear, deslocada no tempo, provoca: precisamos mesmo existir com começo, meio e fim? Ou podemos ser fluxo?
Esse curta lembra que o cinema queer precisa inventar futuros porque o presente ainda não comporta dissidências. A luta por existência também se trava no imaginário. E isso é política de sobrevivência.
Durante o debate, o telão do Cine Santa Tereza projetou as imagens da exposição Cuir Okupa Calle, registros fotográficos das ações da coletiva transfeminista @bazuras, que tomaram o espaço com intensidade.
Mesmo sendo uma mostra originalmente urbana, sua transposição para o ambiente digital e institucional durante o debate não enfraqueceu seu impacto. Ao contrário: rompeu a formalidade da sala de cinema, trazendo a rua para dentro do debate. As imagens interagiram com as falas, com os corpos ali presentes, expandiram a experiência da sessão. A arte passou a ser comentário, extensão, provocação, denúncia, mas também como abrigo simbólico, onde se pode existir sem medo ou, pelo menos, com mais companhia.
O debate que se seguiu à exibição dos curtas foi um dos momentos mais potentes da noite. Com mediação de Tuty Veloso Coura, travesty negra e psicóloga no Núcleo LGBTI+ de Contagem/MG. Contou com participações de Zaíra Magalhães, pessoa negra, não-binária e de Axé, criadore do projeto de multilinguagens Las Palozas, e de Ráiz Policarpo, ativista transfeminista e educador social. O espaço se tornou um território de escuta profunda, provocação política e partilha afetiva.
Foram abordadas questões como o impacto do binarismo de gênero nos relacionamentos, a dificuldade de construir vínculos afetivos longe dos modelos normativos, e o risco de solidão que pode acompanhar a recusa das identidades convencionais. Também se discutiu o quanto a linguagem fragmentada dos curtas se alinha às experiências de quem vive fora do binário, revelando existências feitas de pausas, ruídos e reinvenções constantes.
A recusa ao gênero foi tratada não como fuga da política, mas como ato profundamente político; um gesto de enfrentamento contra estruturas que tentam domesticar corpos por meio da religião, da norma cis-hétero, da cultura e do controle estatal. Nesse sentido, desistir do gênero não é ausência, é criação. E o que emerge dessa recusa são novas possibilidades de ser, de se relacionar, de existir em coletivo.
O debate também refletiu sobre a potência da arte como espaço para a experimentação de identidades, especialmente em um país onde ser não-binárie é um ato de desobediência radical. A arte, nesses contextos, deixa de ser apenas estética e se torna abrigo, linguagem e resistência.
Mais do que um evento, o Cine Diversidade é um projeto contínuo de formação, resistência e acolhimento. Realizado mensalmente pelo CRP-MG, ele articula arte, psicologia e direitos humanos em um espaço gratuito, plural e politizado.
Colocando a visibilidade não-binária como tema, a edição de julho demonstrou o compromisso do projeto com a radicalidade necessária para pensar novas formas de ser, de viver e de se relacionar. Em um país onde pessoas trans e não-binárias ainda são alvos de violência e apagamento, iniciativas como essa são estratégias de manifestação política e de sobrevivência coletiva.
A visibilidade não-binária não é um modismo, nem uma indefinição. É uma pluralidade radical. É política de corpo. É linguagem quebrada. É grito. É silêncio. É cansaço. É sonho. É futuro.
Ao reunir filmes, falas e imagens que recusam a norma, o Cine Diversidade abriu espaço para que outras histórias possam nascer. Que venham mais sessões, mais provocações e mais encontros. Porque no fim, a arte é um dos poucos lugares onde a liberdade ainda é possível.
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