Transfobia no Judiciário

Estudante denuncia servidora do TJ-BA por transfobia: “Deus quer mesmo que você faça essa cirurgia?”

Anna Lua, 21 anos, estudante de Direito
Anna Lua, 21 anos, estudante de Direito | Arquivo Pessoal

No último dia 27 de junho, dentro do Fórum Regional do Imbuí, em Salvador (BA), a estudante de Direito Anna Lua Batista de Araújo afirma ter sido vítima de transfobia praticada por uma servidora pública. A jovem foi questionada de forma ofensiva durante uma diligência sobre seu próprio processo judicial: “Deus quer mesmo que você faça essa cirurgia?”. O episódio foi gravado em vídeo pela vítima e levou ao registro de boletim de ocorrência na Delegacia de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa (Decrin).

Anna Lua relatou que buscava informações sobre o andamento de um processo no qual figura como parte autora, relacionado à cirurgia de redesignação sexual. Ao solicitar vistas ao processo, a servidora Jaciara Conceição dos Santos, segundo consta na denúncia, fez comentários de cunho religioso, questionando a decisão da jovem de realizar o procedimento médico.

Diante da violência verbal, Anna acionou suas advogadas, Dra. Juliana Santos de Jesus de Oliveira e Dra. Janaína Brito de Abreu , que compareceram ao local. As profissionais relataram o caso à equipe de segurança do Fórum, mas, apesar da gravidade, não houve condução das partes à delegacia no momento do fato. Policiais militares da guarda interna registraram informalmente a situação.

A estudante contou ao Observatório G que essa não foi a primeira vez em que sofreu discriminação naquele espaço público. “A forma como fui tratada naquele local sempre foi marcada por inferiorização. Os episódios de transfobia eram recorrentes. Em outra ocasião, ouvi pessoas da 2ª Vara comentando meu caso de forma desrespeitosa e debochada. Cansada disso, decidi gravar quando fosse novamente ao fórum.”

Anna ainda relatou o impacto emocional do novo episódio: “Fiquei sem acreditar que aquilo estava se repetindo. Agradeci pelo atendimento e acionei minhas advogadas fora do prédio.” Segundo ela, a decisão de manter sigilo sobre os próximos passos do processo busca proteger seus interesses e os da comunidade LGBTQIAPN+.

Essa dor não é só minha. É coletiva. E precisa ser ouvida.” / Arquivo pessoal

Para a jovem, o caso precisa ultrapassar os limites do registro legal: “Meu desejo é que esse episódio não seja visto como uma denúncia isolada, mas como um alerta sobre as violências silenciosas que mulheres trans enfrentam, até mesmo no sistema de Justiça. Expor essa transfobia é um ato de resistência.

Anna reforçou que luta por mudanças concretas. “Espero que esse episódio provoque reflexão sobre a escuta, o acolhimento e o tratamento que pessoas trans recebem nas instituições públicas. Respeitar a identidade de gênero não é uma concessão, é um direito. Se minha dor puder evitar outras, terá cumprido um propósito.”

O que dizem as advogadas

O Observatório G conversou com a advogada criminalista Dra. Juliana Oliveira, que representa Anna Lua. Ela destacou a importância de denúncias formais em casos como esse. “Nos casos de transfobia, a denúncia deve ser feita em delegacias especializadas. Em Salvador, temos a Decrin, no Engenho Velho de Brotas. Quando não houver delegacia específica, a denúncia pode ser registrada na unidade policial do bairro.”

Segundo a defensora, o vídeo gravado pela vítima representa uma prova fundamental. “O registro em vídeo mostra o local, o momento e o conteúdo da agressão verbal. Isso o torna uma peça essencial para a investigação e para o processo judicial.”

Questionada sobre o possível desconhecimento da servidora a respeito do teor transfóbico de sua fala, a advogada foi clara: “O juiz analisará todas as alegações, mas o direito da vítima deve prevalecer. A transfobia é crime, ainda mais dentro do Judiciário, que deveria ser um espaço de garantia de direitos.”

Dra. Juliana Oliveira, advogada criminalista do escritório Abreu & Bittencourt / Arquivo pessoal

A servidora, ao ser confrontada pelos advogados da vítima, alegou ter feito “apenas uma pergunta” e pediu desculpas. No entanto, a analogia feita por ela entre a cirurgia de redesignação e uma desistência de viagem aérea também foi vista como tentativa de desencorajar a estudante, reforçando o constrangimento.

Ainda naquele dia, as advogadas relataram o caso ao secretário da Vara e aos policiais militares presentes, embora nenhuma autoridade judicial estivesse disponível no momento para atendimento.

Consequências possíveis para a servidora e o TJ-BA

Dra. Juliana também explicou os desdobramentos legais do caso. “Desde 2019, o STF equiparou crimes de transfobia aos de racismo. Se condenada, a servidora poderá perder o cargo público. Caso o TJ-BA já tenha conhecimento de condutas semelhantes e não tenha agido, o órgão também poderá ser responsabilizado.”

Além disso, a legislação prevê agravantes para casos em que a discriminação é cometida por servidor público no exercício de suas funções. “A pena pode ser aumentada de um terço à metade”, informou a advogada.

Justiça como lugar de acolhimento

O caso de Anna Lua escancara a urgência de reformular a cultura institucional do Judiciário baiano. Para além de medidas punitivas, é necessário que fóruns, tribunais e servidores compreendam a diversidade de forma respeitosa, garantindo o acesso à Justiça com dignidade.

Enquanto isso não acontece, pessoas trans seguem precisando gravar conversas, acionar advogados e denunciar publicamente o preconceito para existir em paz — mesmo dentro de instituições criadas para proteger seus direitos.

Assista ao vídeo gravado por Anna Lua.

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