A delegação coletiva do PCdoB que é formada pelo cientista social Giovanni Culau e os covereadores Airton Silva, Fabíola Loguercio, Vivian Aires e Tássia Amorim tomou posse na Câmara de Porto Alegre nesta semana. Com esse feito se tornaram o primeiro mandato coletivo no Legislativo da Capital do Rio Grande do Sul.
Substitutos nas eleições municipais de 2020, o coletivo entra no lugar da ex-vereadora Daiana Santos (PcdoB), que assumiu seu posto de deputada federal está semana eleita nas eleições de 2022.
O possuinte da delegação, Giovani faz história na capital gaúcha ao se tornar o primeiro vereador gay. Descendente do movimento discente, Culau deu uma entrevista ao Brasil de Fato RS e falou quais os desafios desse mandato e seus projetos que tem em mente para exibir na Câmara Municipal.
“A nossa chegada gera um incômodo naqueles que têm um apego às estruturas que são tão distantes do povo, visto que a sociedade não se enxerga na política e muitas vezes, por isso, quer distanciamento dela. Isso faz mal pra democracia, pra sociedade e pra política. A resistência à nossa chegada será bastante grande, mas a gente já tem construído vitórias”, afirma.
Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS – Nos conta um pouco da tua trajetória.
Giovani Culau – A minha trajetória é completamente vinculada ao movimento estudantil e às lutas da juventude. Ainda no ensino médio, fui presidente do grêmio estudantil da Escola Padre Réus, uma das principais escolas da zona Sul da cidade, e foi lá que conheci a União da Juventude Socialista (UJS). Pouco depois tomei a decisão de me filiar e isso impulsionou a minha militância para um outro nível de compromisso.
Na universidade, participei do Centro Acadêmico das Ciências Sociais (CECS), do DCE da UFRGS e fui vice-presidente regional da UNE no Rio Grande do Sul, representando a UJS. Logo depois me tornei presidente estadual da UJS e permaneci no cargo até o final do ano passado, quando saí para assumir o primeiro mandato coletivo da história de Porto Alegre.
Foi nas lutas da juventude, em defesa da educação e no movimento estudantil, fazendo o debate sobre educação inclusiva, que eu reuni a coragem pra me assumir um militante, um homem, um ativista gay e também um ativista nas lutas da população LGBTQIA+.
“Reconstruir o Brasil passa por reconstruir as políticas públicas que foram desmontadas”.
BdFRS – Como funcionará o mandato coletivo? Decisões, representações e bancada serão compartilhadas?
Giovani – Nosso mandato é coletivo não apenas porque somos cinco covereadores, mas porque queremos construir um mandato radicalmente democrático, participativo e coletivo. Queremos construir um cotidiano de mandato em que todos da cidade, que tenham disposição de trabalhar conosco, se organizem em Grupos de Trabalho. Eles serão divididos pelas diversas pautas que representamos: a luta das mulheres, negros e negras, população LGBTQIA+, cultura, educação, ciência e tecnologia, trabalhadores e trabalhadoras.
Periodicamente, a cada semestre ou bimestre, iremos promover o encontro desses grupos em assembleias de tomada de decisões. Cada covereador será não somente a representação pública de alguma dessas pautas, mas também a coordenação desses GTs. Nos intervalos entre as assembleias teremos reuniões entre os covereadores para as tomadas de decisões coletivas do mandato.
Com esse objetivo nós protocolamos uma proposta de resolução que busca assegurar o reconhecimento. Assim como já fez o TSE, da existência desses coletivos, ainda que não haja uma regularização nacional sobre o tema, mas reconhecer a existência desse mandado coletivo por parte da Câmara para que os covereadores possam participar tendo direito a voz nas comissões permanentes da Casa, nas comissões especiais, nas frentes parlamentares e nas audiências públicas.
Entre os covereadores, nos dividiremos da seguinte forma: Airton será a representação da luta antirracista e em defesa da saúde pública. Eu serei representante da luta pela educação e da população LGBTQIA+. A Fabíola representará a luta das mulheres. A Tássia, a luta da juventude periférica pelas políticas públicas. A Vivian representará os trabalhadores, as mães e os educadores da nossa cidade.
BdFRS – Acredita que encontrará problemas na legitimação deste tipo de mandato?
Giovani – Nós não temos dúvidas que existirá resistência sobre a nossa presença, porque ela enfrenta a concepção tradicional da política pautada na lógica personalista e individual. A nossa chegada gera um incômodo naqueles que têm um apego às estruturas, que são tão distantes do povo, visto que a sociedade não se enxerga na política e muitas vezes, por isso, quer distanciamento dela. Isso faz mal pra democracia, pra sociedade e pra política.
A resistência à nossa chegada será bastante grande, mas a gente já tem construído vitórias. Na nossa posse, que aconteceu quarta-feira (1), conquistamos o direito de os cinco covereadores ocuparem a tribuna no momento do discurso de chegada. Foi um símbolo das batalhas que teremos. Alguns vereadores demonstraram publicamente o seu descontentamento com a nossa coletividade. Sabemos da resistência, mas sabemos que essa luta é justa para transformar a forma como a política é feita em Porto Alegre.
“Queremos que este seja o mandato da juventude e queremos discutir a situação dessa juventude, que tem tido negado o seu direito à cidade, seu direito a viver, o seu direito à cidadania”.
BdFRS – Além de você, quem mais compõe o mandato coletivo? Por que essas pessoas foram escolhidas?
Giovani – Além de mim, mais cinco pessoas compõem o mandato coletivo. O Airton Silva, representante da luta antirracista e da defesa da saúde, é também presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE) do Rio Grande do Sul. A Vivian Ayres é servidora pública federal, técnica da UFRGS, e representa a luta dos trabalhadores, das mães e das educadoras da cidade. A Fabíola Loguércio é representante da luta feminista e a Tássia Amorim a voz da periferia no nosso mandato coletivo.
A decisão sobre essas representações aconteceu no período de pré-campanha. Antes de anunciar uma candidatura, ou quem seriam os candidatos, tomamos uma decisão, em 2019, de construir um movimento com o objetivo de tornar Porto Alegre um território livre do fascismo, conectado com o desafio de eleger Manuela prefeita, mas também com o objetivo de abrir caminho para construção da primeira candidatura coletiva da cidade. Fizemos uma série de encontros para debater propostas, programa e, no curso dessas discussões, fomos afunilando quem seriam essas representações eleitorais para a batalha de 2020.
Foi nesses encontros abertos, nas assembleias do Movimento Coletivo, que encaminhamos e deliberamos as representações e coordenação dessa candidatura, na época, que não se propôs apenas a ser candidatura, e sim um movimento, e hoje não se propõe só a ser um mandato, mas um movimento.
BdFRS – Houve um fenômeno em 2020 que foi a eleição da primeira Bancada Negra na Câmara, que se repetiu agora nas eleições de 2022, levando essa representatividade para a Assembleia. É possível a constituição de uma bancada LGBTQIA+ na Câmara de Vereadores? Se sim o que seria necessário para isso acontecer?
Giovani – A eleição da Bancada Negra é resultado de um acúmulo muito profundo da luta e da capacidade política de organização social do Movimento Negro, na cidade e no país inteiro, mas com grande significado em Porto Alegre. Eu não tenho dúvida que a população LGBTQIA+ tem muito a aprender com o Movimento Negro organizado. Porto Alegre é uma das capitais do Brasil com a maior taxa de declaração de pertencimento à população LGBTQIA+. Ampliar a nossa representatividade é uma necessidade. Ano passado, no mês do orgulho LGBT, com a posse dos suplentes, formamos uma bancada expressiva de cinco LGBTs na Câmara de Porto Alegre. A eleição da Daiana em 2020 e a nossa posse agora também contribui para que, em 2024, nós possamos ampliar essa bancada.
Os desafios são enormes, como o de construir um conselho municipal da população LGBTQIA+ em Porto Alegre que contribua para a formulação de políticas públicas. Uma bancada forte para cobrar do Executivo a aplicação da lei que pune estabelecimentos comerciais com práticas discriminatórias contra nós, lei orgânica que já existe, mas não é feita a fiscalização. No novo plano municipal de Educação, construir uma educação inclusiva que abra caminho para o respeito à diversidade sexual e de gênero. Temos muito a aprender com o Movimento Negro. É uma necessidade e uma possibilidade de ampliar a representação LGBTQIA+ de Porto Alegre.
BdFRS – Na sua avaliação, o que significa ser o primeiro vereador homem gay a ocupar um espaço na Câmara de Porto Alegre? Pretendes levar a pauta LGBT para o mandato? E como avançar nessa pauta?
Giovani – A minha chegada à Câmara de Vereadores, na condição de único homem gay vereador de Porto Alegre, diz respeito, acima de tudo, às lutas dos que vieram antes de mim. Até hoje no mundo existem leis que proíbem a nossa existência, e foi contra essas leis que homens e mulheres se levantaram pelo nosso direito de existir e defender que nós não éramos resultado do pecado, um distúrbio mental ou um distúrbio hormonal. Ou seja, nós não éramos pecado, nem doença, e a gente vem dizendo isso até hoje. Mas a luta daqueles homens e mulheres abriram caminho para que hoje eu possa ser porta-voz e ocupar uma Câmara Municipal de uma das principais capitais do país afirmando a minha identidade. Isso impõe uma responsabilidade muito grande de levar essas lutas adiante porque essa batalha ainda está muito distante de ser resolvida.
Bolsonaro e a eleição dele à Presidência da República aumentou a violência contra a população LGBTQIA+ no Brasil. Nós temos que enfrentar o tema da violência, do nosso acesso à educação, ao trabalho, à saúde, sempre compreendendo a interseccionalidade, porque a interseccionalidade de gênero, raça e classe também hierarquiza aqueles que são os principais alvos, as principais vítimas dessa sociedade opressora contra a nossa existência.
É por essas lutas, a partir de Porto Alegre, que a gente tem o desafio de se colocar à disposição, honrando todo mundo que abriu caminho para que a gente chegasse até aqui. Os nossos desafios em Porto Alegre são gigantescos. Temos como pontos de partida a luta em defesa da educação, porque ela é emancipadora e capaz de transformar a sociedade, e a criação de um conselho municipal para a população LGBTQIA+.
BdFRS – Quais os maiores desafios a serem enfrentados como oposição em Porto Alegre, agora que a esquerda volta a comandar o país com Lula presidente?
Giovani – Nós precisamos nos posicionar, enquanto oposição em Porto Alegre, o debate de como Porto Alegre se insere no desafio nacional de reconstrução do Brasil. Reconstruir o Brasil passa por reconstruir as políticas públicas que foram desmontadas no país e na nossa cidade, como garantir condições de vida digna para as pessoas. No Brasil, Bolsonaro foi o projeto da fome e da morte, e em Porto Alegre também fomos vítimas do negacionismo, com milhares de pessoas que hoje passam fome. Nós precisamos posicionar Porto Alegre no desafio nacional de recuperar o direito a uma vida digna.
“Os desafios são enormes, como o de construir um conselho municipal da população LGBTQIA+ em Porto Alegre que contribua para a formulação de políticas públicas”.
A eleição de Lula em Porto Alegre nos dois turnos permite entendermos essa mudança que temos construído na correlação de forças. Estamos distantes de ter vencido a batalha final, temos muita luta pela frente, mas precisamos nos animar e impulsionar nossa resistência porque Porto Alegre vai enfrentar nos próximos dois anos duas discussões muito importantes para a cidade. A ameaça do governo Melo de privatização do DMAE e a nossa luta pelo direito à água como direito à vida, e também a discussão do Plano Diretor, que diz respeito ao direito à cidade.
Nós temos alguns territórios na cidade que têm acesso aos serviços públicos, às políticas públicas, ou seja, direito à Porto Alegre, e territórios que são completamente segregados e excluídos. Nós precisamos, no embalo do debate sobre o Plano Diretor, fazer essa discussão apontando um projeto alternativo para a nossa cidade porque hoje nós não temos uma Porto Alegre só, nós temos muitas cidades em uma só. Precisamos perseguir uma cidade que seja mais justa e mais igualitária.
BdFRS – Tu és oriundo do movimento estudantil e tem entre as tuas bandeiras a juventude. Como trabalhará a educação no mandato, especialmente no contexto que estamos vivendo?
Giovani – Nós queremos que o nosso mandato seja um instrumento da luta pela educação infantil ao ensino superior. Mas temos temas que Porto Alegre precisa encarar urgentemente que diz respeito à competência municipal, como a falta de vagas na educação infantil e o abandono escolar, em especial no ensino fundamental. Nesse período da pandemia, de 2020 a 2021, o abandono escolar cresceu 900% na nossa cidade. No ensino médio, o abandono cresceu 100% no mesmo período.
Precisamos enfrentar o analfabetismo. Quase 30.000 pessoas em Porto Alegre estão nessa situação e elas estão concentradas nos lugares mais pobres da nossa cidade. Isso é inadmissível em uma cidade como Porto Alegre. Nós vamos lutar para fazer de Porto Alegre a capital da educação.
BdFRS – Quais as principais lutas do PCdoB que irás trazer pro Legislativo municipal?
Giovani – O PCdoB tem um vínculo profundo com as lutas em defesa da educação, não só na cidade como no país inteiro. Eu, o Movimento Coletivo e a Abigail Pereira, a nossa bancada do PCdoB, tem uma grande contribuição a dar. O PCdoB, em Porto Alegre, construiu uma tradição enorme de disputa do projeto de cidade. Nós disputamos, nos últimos anos, com Manuela D’Ávila as eleições de 2008, 2012 e 2020. Nós queremos contribuir com essa disputa de rumos: qual é a Porto Alegre do futuro que nós queremos?
Queremos debater a educação, a saúde, discutir a questão da parceirização, da privatização na saúde, o desmonte da assistência social, retomar o debate sobre o transporte público, fazer um balanço profundo se as medidas adotadas pelo governo Melo encararam ou agravaram o problema do transporte ou se vão impactar outras áreas. Está vinculado ou não a mudança nas isenções com o aumento da taxa de abandono escolar? São questões profundas que nós precisamos discutir.
O PCdoB tem um vínculo profundo com a educação, mas também um vínculo profundo com a juventude. E nós queremos que este seja o mandato da juventude e queremos discutir a situação dessa juventude, que tem tido negado o seu direito à cidade, seu direito a viver, o seu direito à cidadania. Inclusive, por isso, uma das nossas primeiras ações, agora empossados na titularidade, será o protocolo da Frente Parlamentar Juventude Viva. Nós queremos discutir e defender a vida da juventude que está sendo exterminada na periferia de Porto Alegre, como é no Brasil inteiro. Nós queremos que a nossa juventude tenha o direito de viver, e viver com direitos, cidadania e oportunidades.