Quando uma pessoa trans decide alinhar seu corpo à sua identidade de gênero, ela não está apenas buscando uma transformação física — mas, sobretudo, uma afirmação de sua existência, dignidade e bem-estar. No Brasil, esse caminho acaba de ganhar novos contornos após a publicação da Resolução CFM nº 2.427/2025, em 16 de abril, que atualiza as regras para os procedimentos de transição de gênero no país.
Entre as principais mudanças estão a proibição do uso de bloqueadores hormonais em crianças e adolescentes, além do aumento da idade mínima para cirurgias com efeito esterilizador de 18 para 21 anos — uma decisão que gerou debates entre especialistas, profissionais da saúde e a própria comunidade trans.
Para entender o que muda na prática, quais são os passos necessários para quem deseja realizar a cirurgia de confirmação de gênero, e quais são os impactos emocionais, físicos e sociais desse processo, o Observatório G conversou com o Dr. Luiz Augusto Westin, urologista especializado em cirurgia de redesignação sexual, que há anos acompanha de perto essas jornadas de transformação.
O Caminho Pelo SUS: Mais Centros, Mais Acesso
Atualmente, o Brasil conta com oito centros especializados credenciados pelo Ministério da Saúde para realização das cirurgias de confirmação de gênero pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A boa notícia é que há previsão de expansão para doze centros, o que representa um avanço importante na democratização do acesso.
“O que vale destacar é que os critérios adotados no SUS são exatamente os mesmos da rede privada. A regulamentação da saúde pública serve como referência também para os atendimentos particulares”, explica Dr. Westin, que também colaborou na elaboração da nova portaria trans, homologada em dezembro de 2024.
Cirurgia de Confirmação de Gênero: Mais do Que Genitália
Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a cirurgia de confirmação de gênero vai muito além da genitália. Ela é parte de um conjunto de procedimentos que envolvem tanto aspectos físicos quanto emocionais e sociais, respeitando as necessidades de cada pessoa.
Para homens trans, as cirurgias não genitais incluem:
- Mastectomia (retirada das mamas);
- Histerectomia, com ou sem remoção dos ovários.
Já as cirurgias genitais podem ser:
- Metoidioplastia – construção de um pênis de pequeno porte a partir do clitóris hipertrofiado pela testosterona;
- Neofaloplastia – construção de um pênis de maior porte usando tecidos de outras partes do corpo, como antebraço, coxa ou abdômen.
Para mulheres trans, os procedimentos não genitais podem incluir:
- Feminilização facial (harmonização dos traços);
- Tireoplastia (redução do pomo de Adão);
- Próteses mamárias.
Nas intervenções genitais, estão:
- Neovulvoplastia e neovaginoplastia, que possibilitam a construção de genitália feminina, permitindo inclusive a prática sexual com penetração.
Mais Que Medicina: Um Processo de Cuidado
O caminho até a cirurgia é pautado por um cuidado que vai além da técnica médica. É indispensável um acompanhamento multidisciplinar, que envolve psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e outros profissionais.
“O acompanhamento psicológico não tem caráter de julgamento nem diagnóstico da identidade. Ele é, sobretudo, um espaço de acolhimento, de preparação para as mudanças físicas e emocionais que virão, e de suporte no pós-operatório”, destaca Dr. Westin.
Esse acompanhamento é fundamental para garantir que a pessoa compreenda as limitações, os riscos, os ganhos e os desafios do processo. Quando a equipe percebe que ainda há inseguranças quanto às expectativas ou entendimento dos resultados, é possível que o procedimento seja adiado, sempre com foco no cuidado e na saúde integral do paciente.
Limitações, Riscos e Possibilidades
Nenhuma cirurgia é isenta de riscos. No caso da confirmação de gênero, podem ocorrer complicações como infecções, sangramentos, trombose, necrose de tecidos e, especialmente nas cirurgias genitais mais complexas, a necessidade de cirurgias corretivas é bastante comum nos primeiros meses.
“O sucesso de uma cirurgia começa muito antes do centro cirúrgico. Envolve uma avaliação detalhada, conversas francas e um entendimento muito claro de que nenhum procedimento é perfeito. Cada corpo responde de uma forma. O mais importante é alinhar expectativas com a realidade”, alerta o médico.
O Desafio Específico das Cirurgias Para Homens Trans
As cirurgias genitais para homens trans são, hoje, um dos maiores desafios da medicina de afirmação de gênero. A metoidioplastia permite urinar em pé e oferece sensibilidade, mas o tamanho é reduzido. Já a neofaloplastia, embora proporcione um falo de maior porte, é feita em etapas, envolve a construção de uma uretra alongada e, posteriormente, a implantação de uma prótese peniana, que possibilita relações com penetração.
“Mesmo com os melhores avanços da medicina, replicar a anatomia de um pênis cisgênero em todos os seus aspectos — estéticos, funcionais e sensoriais — ainda é um grande desafio. E é fundamental que isso seja conversado de forma honesta com os pacientes”, pontua Dr. Westin.
E os Custos?
Na rede privada, os custos podem variar bastante. Eles dependem do tipo de cirurgia, da complexidade do caso, das próteses e materiais utilizados e da equipe médica. Algumas cirurgias podem ultrapassar R$ 150 mil, principalmente nas etapas mais complexas da neofaloplastia.
Por outro lado, todas essas cirurgias estão disponíveis de forma gratuita no SUS, desde que sejam cumpridos os critérios estabelecidos, incluindo laudos psicológicos, acompanhamento especializado e avaliações médicas.
O Direito de Existir, Ser e Viver
A busca pela confirmação de gênero não é sobre estética. É sobre viver de forma plena, segura e digna. Em meio a debates públicos carregados de desinformação, retrocessos e discursos de ódio, é urgente lembrar que esse é um direito humano básico: o direito à própria identidade.
“Cada paciente que chega até nós carrega uma história de luta, de dor, de esperança. Nosso papel como médicos é oferecer, além da técnica, respeito, escuta e cuidado”, finaliza Dr. Westin.
Em um país onde ser trans ainda significa enfrentar diariamente o preconceito, garantir acesso à informação, à saúde e ao cuidado não é apenas uma questão médica — é uma questão de humanidade.