Entrevista

Uma conversa sobre psiquiatria, pessoas trans e sofrimento mental

A psiquiatria é um ramo da medicina importante para a saúde integral das pessoas transgêneras, em virtude das múltiplas formas de violência que esta população enfrenta.

Uma conversa sobre psiquiatria, pessoas trans e sofrimento mental

Dr. Miguel de Castro Santos é médico psiquiatra, com atuação nas áreas de saúde mental, saúde pública e diversidade. Mestre em Promoção de Saúde e Prevenção da Violência pela UFMG, tendo pesquisado o acesso à saúde de pessoas trans em Minas Gerais. Ex-integrante da equipe do Ambulatório Multidisciplinar Especializado na Assistência às Pessoas Trans e Travestis do Hospital Eduardo de Menezes, da Rede FHEMIG, atuando entre 2018 e 2022. É nosso convidado para conversar sobre sofrimento mental, transvestegeneridade e o papel da psiquiatria na saúde da pessoa transgênera.

1] No imaginário comum, quando um diagnóstico médico é realizado, uma doença é encontrada. É isso mesmo?

Essa é uma discussão que exige reflexão e cuidado, pois depende muito dos referenciais adotados. Sugiro fortemente a leitura de autores como Georges Canguilhem e Cecil Helman para uma discussão ampliada. Partindo de uma das definições da palavra diagnóstico na língua portuguesa – Qualificação dada por um médico a uma enfermidade ou estado fisiológico, com base nos sinais que observa (MICHAELIS, 2015), veremos que não necessariamente o diagnóstico encontra uma doença. Podemos, por meio de um exame de sangue de B-HCG, por exemplo, diagnosticar uma gestação, que não diz respeito por si só a uma condição patológica, obviamente. Em saúde pública ou mesmo em gestão de serviços saúde, os profissionais em geral – não somente médicos – realizam a todo momento diagnósticos situacionais para implementar melhorias no ambiente de trabalho.

Paralelamente a isso, sabe-se que a própria medicina viveu e ainda vive um processo de excesso de diagnósticos com os manuais contemporâneos, e historicamente contribuiu, infelizmente, para que condições humanas fossem patologizadas por meio do ato de diagnosticar, como foi o caso da homossexualidade e das experiências trans na segunda metade do século XX. É preciso admitir tal herança e construir uma nova forma de pensar o cuidado.

2] No campo da psiquiatria, o que faz de uma determinada característica ser uma doença e não uma possibilidade de existência humana?

Basicamente, uma condição de sofrimento psíquico é delimitada por um período determinado em que o indivíduo tem uma ruptura com seu modo de funcionamento prévio, que envolve comprometimento de sua saúde mental, com critérios específicos a depender da condição (cada patologia tem seus critérios) e está associada a sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. Por exemplo, podemos diferenciar a tristeza (um sentimento evolutivamente importantíssimo, a que todos estamos sujeitos diante de momentos de dificuldade) da depressão (uma condição de sofrimento psíquico) pelo tempo em que cada um está presente e a gravidade dos sintomas para o funcionamento pessoal do indivíduo.

3] Neste caso, quando profissional da medicina acompanha uma pessoa transvestegênere, ainda que seja uma atitude médica, não significa que ser transgênere seja uma doença. É isso?

Com certeza, ser trans e ter um acompanhamento em saúde nada tem a ver com ter alguma doença em si. A transgeneridade é mais uma das formas de identidade de gênero dentro de um espectro bastante variado. Primeiramente, quando uma pessoa trans procura um atendimento em saúde, ela não está buscando um “diagnóstico de transgeneridade” em si. O profissional de saúde não diagnostica a identidade de gênero do indivíduo, esta identidade é autodeclarada. É o próprio indivíduo trans que vai nos dizer qual é a sua identificação dentro desse espectro. Além disso, mesmo quando o profissional de saúde encontra uma situação particular, como por exemplo, um incômodo mais intenso com algumas partes do corpo, que determinadas (mas não todas) pessoas trans experimentam, ainda assim há toda uma discussão ampliada sobre se isso em si seria um diagnóstico.

Por outro lado, há várias questões transespecíficas que podem ser acompanhadas em atendimento por profissional da saúde, como saúde sexual e reprodutiva, assistência a modificações corporais transitórias ou permanentes naquelas pessoas que as desejam, cuidados em saúde mental, entre vários outros pontos. Voltando ao exemplo da gravidez, as pessoas que engravidam precisam de um cuidado específico chamado pré-natal, e não necessariamente elas são consideradas doentes por estarem gestantes.

4] Podemos, então, afirmar que o exercício da medicina também é um exercício ideológico (não importa qual) e um ato político?

Acredito que sim. Acho que o exercício da medicina envolve acompanhar a civilização em suas transformações discursivas; quando uma parte dos profissionais médicos (infelizmente não podemos responder por toda a classe) abraça a despatologização das identidades trans, por exemplo, há aí um movimento ético e de mudança social, que a meu ver é fundamental para nossa evolução como sociedade. Pensando em saúde pública, não há como normalizar o fato de que uma parcela saudável da população brasileira tem uma expectativa de vida reduzida por questões que também são atravessadas pelo campo saúde (pessoas trans estão morrendo jovens em grande parte por meios violentos, mas também por menor acesso à saúde pública de qualidade), e isso nos diz respeito enquanto agentes de cuidado. Somos todos sujeitos do nosso tempo.

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