Carlos Bolsonaro quer proibir linguagem neutra. Especialista diz se é possível efetivá-la nas escolas

Carlos Bolsonaro
Carlos Bolsonaro (Foto: Reprodução/Instagram)

Para discutir sobre a linguagem neutra nas escolas é imprescindível trazer à luz um debate que transcenda questões ideológicas e partidárias. O ideal é abrir uma discussão abrangente, manter a pluralidade de ideias e argumentar com maturidade.

O assunto está cada vez mais robusto. O intento é propiciar, nas empresas e no ambiente escolar, uma linguagem mais inclusiva, que acople a todos.

Recentemente, a Japanese Airlines (JAL), companhia aérea sediada no Japão, anunciou que irá abolir o termo “senhoras e senhores” do chamamento de seus voos. Air Canada e EasyJet, por exemplo, mudaram para saudações de gênero neutro no ano passado. 

Na contramão, aqui no Brasil, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) apresentou um projeto de lei que visa proibir que escolas públicas e particulares do Rio de Janeiro adotem referências da ‘escrita neutra’.

No texto, Carlos Bolsonaro quer vetar, por exemplo, expressões como ‘todes’ ou ‘todxs’, que surgiram como alternativas nos últimos anos para evitar a categorização binária – masculino e feminino.

Nesse sentido, para aclarar o tema, o Observatório G conversou com o especialista em linguagem, o professor André Valente, Bacharel em Letras pela FFLCH-USP, professor de língua portuguesa e literatura, pós-graduando em Estudos Brasileiros pela FESPSP, que nos concedeu suas observações minuciosas acerca do tema.

Introdução ao assunto

Primeiramente, precisamos olhar para este assunto com seriedade, se queremos, realmente, entendê-lo de maneira honesta e não, simplesmente, transformar mais um assunto complexo em mero tema para disputas partidárias e ideológicas, frases de efeito e baixarias sem fim”, começou. 

“Do ponto de vista dos estudos linguísticos, quando falamos de uma língua, estamos falando de algo que tem, pelo menos, duas dimensões: uma estrutural formada por sons, palavras, frases, que pode ser representada pela fala ou pela escrita, conhecida pelo senso comum como gramática; outra que é a do uso da linguagem para expressar emoções, ideias, propósitos, identidades, etc, em variadas situações de comunicação, que podemos chamar de discurso”, explicou. “Em síntese: não são as pessoas que servem a uma entidade abstrata, a língua; mas sim, a língua que serve às pessoas”.

Mudanças na linguagem

“Atualmente, podemos verificar que algumas palavras estão passando por uma fase de mudança de seu gênero, como é o caso de “aguardente”, “alface”, “ferrugem”, “avestruz”, “diabete(s)”, “modelo”, “sabiá”, “soprano” entre outras, que hoje são usadas tanto no masculino, como no feminino”.

“Toda essa explicação nos mostra que, embora a língua tenha suas regras próprias, que não se modificam de acordo com a vontade de indivíduos ou por força de decretos, leis, manifestos ou outros meios artificiais, tampouco é certo dizer que ela não muda ou que alguma mudança é inviável, afinal, não há nada que impeça a língua de aderir a formas, inclusive que não fazem parte de sua estrutura. Este é o caso, por exemplo, da expressão “testar positivo”, que vem sendo amplamente usada no contexto da pandemia de coronavírus, sem nenhum tipo de resistência por parte de especialistas, nem da sociedade como um todo, nem de nenhum político que se apresente como defensor do patrimônio cultural da nação representado pela língua”. 

“Quando se diz “Ela testou positivo.” ocorre o fenômeno chamado de decalque, que é a
tradução literal de um termo de uma língua para outra. Neste caso, usa-se o efeito de
um teste como complemento, como se estivesse dizendo: Fiz o teste e deu positivo”.

“Outro exemplo é o dos pronomes de tratamento “senhor”, “senhorita” e “senhora”; enquanto “senhor” é um tratamento cerimonioso empregado para homens, desde a adolescência, no mínimo; as mulheres, enquanto solteiras, são tratadas como “senhorita”, não importando a idade que tenham, passando a ser “senhoras” apenas quando se casam e passam a ser esposas do senhor, como do patrão. O mesmo ocorreu, em 2010, quando a então candidata à presidência do país, Dilma Rousseff optou por utilizar o vocábulo “presidenta” para se referir à pessoa dela ao ocupar o cargo máximo do país”.

Analisando pela perspectiva estruturalista, de fato, não se percebem as relações entre a língua e a sociedade que dela faz uso, mas, insisto em uma questão – para que serve uma língua senão para que as pessoas se comuniquem em sociedade? E se o sentido de “comunicar” é tornar comum, como podemos almejar que as pessoas compartilhem de forma igualitária os diversos contextos de comunicação se a língua expressa uma visão de mundo que privilegia o masculino e mantém o feminino como segundo plano?, indaga. 

“Na sociedade, ninguém tem que pedir permissão para que uma expressão, palavra ou ideia seja usada nas relações sociais, principalmente, em contextos de informalidade, que são a maioria em nosso dia a dia; isso simplesmente acontece, independente das vontades de quem é a favor ou contra e, até mesmo das opiniões de intelectuais, políticos e de outras personalidades”.

Provocar é necessário

“Não há outra forma de fazer isso, a não ser pela quebra do silêncio, da zona de conforto de quem está na posição de privilégio, que historicamente, fez com que mulheres e pessoas não-hétero e ou não-binárias tivessem que se adequar ou simplesmente desaparecer, como proclamam algumas pessoas. Porém, os tempos são outros, a sociedade está mudando, não há por que nos recusarmos a, pelo menos, refletir sobre isso. A alegação que vem sendo feita por esses que querem impedir que a discussão seja feita, de que isso seria uma espécie de atentado contra a língua, a cultura, a nação, é mais um alarmismo oportuno e que deixa nítida uma tentativa de silenciar toda e qualquer discussão que confronte os tais valores conservadores”. 

Implementar o neutro nas escolas 

“Sobre as escolas, nunca se falou em acabar com o masculino e o feminino, nem em neutralizar tudo; nunca se disse que os estudantes passariam a se sentar em “cadeires”, a escrever com “canetes”, a carregarem os materiais em “mochiles”, isso é de uma simplificação que beira o absurdo e aponta para uma deturpação intencional da discussão, com o intuito de jogar a opinião pública contra as pessoas que propõem o debate. O que se propõe é um tratamento inclusivo para pessoas, seres humanos não-binários e ou grupos heterogêneos. Qualquer outra ideia é fruto de fake news, que aliás, não é uma expressão em português, não faz parte de nossa língua e foi perfeitamente incorporada ao nosso vocabulário, sem nenhuma resistência também”. 

“Ninguém está propondo que as escolas abandonem o ensino da norma culta, como um dos deputados colocou em seu Projeto de Lei. O que se propõe é ensinar que a língua é uma forma de refletir a sociedade em que vivemos e que é variável. Que as palavras não são neutras, elas fazem parte das relações sociais. Que, se no passado, masculino e feminino bastavam, hoje, não bastam mais”.

“Negar que a escola tem o direito e o dever de promover debates como este é negar o que a Constituição Federal preconiza em seu artigo 206 que preceitua que “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; / III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;. Como falarmos em liberdade, em pluralismo de ideias se a cada tentativa de se colocarem esses princípios em prática, governantes e legisladores utilizam-se de seus poderes para impedir que a escola cumpra a Constituição?”.

Infringir o português

“Não há nada que infrinja as “regras” do português, uma vez que a norma culta é reconhecida pelos estudos linguísticos, pelas legislações vigentes e até pelo senso comum da sociedade apenas como uma das possibilidades da língua, uma idealização que não encontra aplicação total em nenhum âmbito, um padrão que se sustenta em uma visão platônica de língua, distante da realidade, mas que ainda tem seu lugar em contextos formais”.

“Educar linguisticamente significa tornar os estudantes poliglotas na própria língua, capazes de compreender a língua e suas variações e, assim tornar-se aptos a falar, a escrever e a ler textos diversos, em situações diversas, respeitando a linguagem própria de cada situação. Se queremos, de fato, desenvolver o senso crítico de nossas crianças, não será cerceando o direito ao conhecimento que conseguiremos isso”.

Preconceito

“Se o emprego da linguagem neutra, sozinho, não é capaz de mudar a sociedade sexista e transfóbica, sem ele, tampouco a sociedade muda. É claro que somente isso não vai ser suficiente para que o Brasil deixe de ser o país que mais mata pessoas lgbtqia+ no mundo, mas, até quando vamos repetir esses discursos e nada fazer? Eu, como linguista, como professor, como educador gostaria de poder usar o meu trabalho, a minha voz para combater as desigualdades e as discriminações em nossa sociedade, ao mesmo tempo em que compartilho com os estudantes o conhecimento necessário”.

“A história nos mostra que várias mudanças acabaram sendo incorporadas à língua e se tornaram tão autênticas e legítimas quanto outras formas de expressão, de tal maneira que ninguém discute seus usos, o caso do Vossa Mercê, que hoje se tornou Você, incorporado à norma culta da língua e “cê” no cotidiano das pessoas; o caso do “tu” e do “vós”, que não são mais usados como prescreve a norma gramatical na maioria do país, essas e outras inúmeras mudanças acontecem na língua todos os dias, sem que ninguém possa impedir”.

“Não faz sentido criar um cavalo de batalha sobre isso com tantas questões mais importantes a serem resolvidas. As pessoas estão apenas pedindo para serem ouvidas, para serem respeitadas. Que mal há nisso? Em que fere a moral, os bons costumes, a soberania nacional, a suposta pureza da língua uma discussão sobre igualdade e inclusão? Ou será que o incômodo é outro?”, finalizou. 

Abaixo, disponibilizamos a explanação completa do professor.

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