religião

O Judaísmo e a homossexualidade. A religião e a orientação sexual

Em relação à sexualidade, as religiões têm diferentes formas de interpretar

Ilustrativa
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Foram registradas várias formas de religião durante toda a história da humanidade. Ela pode apresentar-se como um produto que envolve fatores sociais, filosóficos e psicológicos. Entre os estudiosos do tema, há uma concordância sobre o papel da religião em trazer um conforto para os sujeitos, especialmente por meio de respostas como para onde vamos? Porém, há uma discordância ferrenha que versa sobre o que, de fato, define uma religião. A palavra Religião tem origem no latim Religare. Seria basicamente aquilo que une as pessoas em torno de algo convergente. As variadas religiões costumam ter ideias diferentes sobre a salvação.

Em relação à sexualidade, as religiões têm diferentes formas de interpretar. Mallanaga Vatsyayana, teólogo hindu dos séculos 3 e 4, escreveu o Kama Sutra, por exemplo, que foi um antigo texto indiano sobre o comportamento sexual humano.

Dentro da tradição judaica, para que todos possam entender o tema com profundidade, o Observatório G conversou com o Gaavah, coletivo judaico LGBT+ do Instituto Brasil-Israel.

1 – O que é ser judeu? Qual a essência do judaísmo?

Podemos responder essa pergunta em dois contextos: primeiro em um social, seguido de um religioso. Isso porque, primeiramente, ser judeu é ser parte de uma cultura em que a religião é uma de suas manifestações. Portanto, ser judeu é pertencer e ter a resiliência de manter uma tradição milenar através da transmissão pela família, de valores, idiomas e, com certeza, a religião.

Pela religião, que foi o berço e um dos elos que manteve e mantém o povo judeu vivo e unido, podemos explicar o que é ser judeu e qual a essência do judaísmo em uma mesma resposta. Na tradição judaica, existem duas narrativas que explicam bem sobre essas questões. A primeira é quando um rapaz interessado em se converter ao judaísmo se aproximou de um sábio e desafiou o rabino a definir a essência do judaísmo erguido em um pé só. O sábio
respondeu “Aquilo que é odioso para você, não faça aos outros. Isso é a Torá inteira. O resto são comentários. Agora, vá e estude-os”.

A segunda é uma explicação da tradição rabínica de quando encerramos nosso ciclo da vida e vamos ao tribunal celestial e somos questionados sobre nossas ações na vida terrena. De acordo com os sábios, nenhuma das perguntas envolve pergunta “Você acreditou em Deus?” ou “Você observou os mandamentos rituais?” mas “Você foi honesto em sua conduta?”. Em outras palavras, a essência do Judaísmo é sobre ação ética. O entendimento judaico é que somos definidos não só por nossa presença na sinagoga ou observância religiosa. O compromisso com os valores centrais que esses rituais representam é de fato importante, mas, em última análise, eles nos estimulam a uma vida mais ética. Ou seja, ser judeu é tentar fazer do nosso mundo, um mundo justo e de paz para ‘todes’, sempre questionando as injustiças e instabilidades da nossa sociedade, mais do que apenas manter nossos rituais.

Desta maneira ao pensarmos em essência judaica falamos de conexão familiar, cultural ou religiosa. Por fim, estes fatores proporcionam a criação da concepção de identidade judaica, sem “ismos”, apenas a relação pessoal do sujeito com a sua identidade.

2 – As religiões comumente chamadas de “abraâmicas” são monoteístas e tiveram origem em Abraão. O judaísmo traz esta ideia de Deus uno, a visão unitária de Deus. Existe o conceito de pecado em todas as divisões da tradição Judaica? (Aqui falo dos desdobramentos, reformistas, conservadores e ortodoxos). Se sim, vocês, como comunidade inclusiva, como lidam com isso?

O desenvolvimento das ideias sobre o sagrado é bem diferente de uma tradição para outra ao redor do mundo. Termos como “religiões abraâmicas” ou “judaico-cristão”, por exemplo, são bem complicados. Pois são tentativas de sintetizar tradições completamente diferentes (e que possuem diferenças internas) num grande guarda-chuva.

Exemplificando com o caso das “religiões abraâmicas”, no cristianismo e no Islam, há a ideia de proselitismo; de converter pessoas para uma “crença na divindade única”. Para o judaísmo, o proselitismo é proibido. O povo judeu possui uma relação singular com seu sagrado, mas isso não exclui as outras tradições e suas relações com suas divindades. O Rabino Henry Sobel Z’’L, importante liderança judaica progressista no Brasil, afirmou certa vez: “que
haja diferenças, mas que não haja divisões”. Respeitar o outro como ele é, é mais importante do que inclui-lo numa falsa unidade.

Isso é importante também para entender os conceitos de pecado em hebraico. Os termos “chet”, “avaira” e “avon”, que são os termos mais próximos do conceito de “pecado” comumente dito, falam de falhas que nos ajudam a ter outra chance de melhorar; transgressão de algum preceito, ou de injustiça social (a indiferença em relação a pobreza e a fome podem ser entendidas como pecado). Dito isso, há sim a ideia de pecado em todas as linhas do judaísmo, com uma pluralidade de interpretações, mas longe de ser a mesma noção de pecado e da forma de lidar com eles que em outras tradições religiosas, especialmente as que são comumente chamadas de “abraâmicas”.

3 – Integrar o judaísmo à vida social pressupõe entender que a diversidade constitui a sociedade, certo? Como abraçar esta variedade que nos é própria sem abrir mão dos fundamentos da tradição judaica, isso é possível?

O judaísmo por si só já está integrado à vida social e abraçar a pluralidade é um fundamento da tradição judaica. Pessoas são diversas. Isso é um fato. Se grupos judaicos decidem negar essa realidade ou abraçá-la, isso é uma decisão de cada grupo ou indivíduo. A história judaica é uma história sobre um povo que foi tratado (e ainda é em muitos casos) como “pária” ou “o outro” em diferentes tempos e sociedades.

É impossível ser sensível à história judaica sem ser sensível a todos os grupos menorizados e vulnerabilizados. A própria história de Shemot (Exôdo), vital na Torá, traz a ideia de um sagrado que não está do lado do opressor (o Faráo), mas do lado do oprimido (o povo hebreu). Essa é uma revolução da ideia do divino na história humana.

4 – No livro Judaísmo e Modernidade, os autores fazem algumas críticas sobre uma suposta “nova cultura judaica”. Existem preceitos inclusivos no judaísmo, assim como vocês, em outros países?

Existem grupos semelhantes ao nosso em diversos países. Somos membros também, enquanto organização, do Congresso Mundial de Judeus LGBT+ e temos uma representação brasileira da Agudah, Força Tarefa LGBT de Israel. Mantemos diálogos e parcerias com grupos aqui na América Latina e ao redor do mundo.

Também mantemos contato com sinagogas historicamente LGBTQIA+, como a Shaar Zahav de San Francisco e a Congregação Beit Simchat Torah de Nova York nos EUA.

Há não muito tempo, auxiliamos a União do Judaísmo Reformista para a América Latina (UJR-AmLat) com a produção de um material para o mês do orgulho, e por vezes, somos ‘convidades’ a dar capacitações em comunidades judaicas pelo Brasil.

Nosso trabalho é semelhante a diversas iniciativas como o Keshet (sediada nos EUA, significa “arco-íris” em hebraico e é uma das principais organizações LGBTI+ judaicas no mundo), Eshel, JQY (organizações que trabalham na inclusão e vivência religiosa de judeus/judias/’judies’ LGBTQIA+ de origem ortodoxa), HaMakom LGBTIQ+, JAG e Guimel (organizações LGBTQIA+ judaicas latino-americanas). O número é extenso e esperamos profundamente que mais espaços que trabalhem a equidade no mundo judaico e na sociedade geral, religiosa ou não, possam surgir para que construamos ‘juntes’ o que chamamos em hebraico de “tikun olam”, a melhora/reparação do mundo, para que um dia entendamos que fazemos parte de um único caminho para a paz.

5 – No filme Desobediência, adaptado do livro homônimo de Naomi Alderman, é narrada a história da paixão entre duas mulheres. Porém, advindas de uma comunidade judia ortodoxa, existe uma retaliação muito grande. Esta repressão com a sexualidade é muito comum em visões mais conservadoras do judaísmo?

Sim. Porém, a repressão vem mais por influência dos valores da sociedade ocidental do que da própria tradição judaica. Como cultura que passou por imigrações e se tornou parte dessa sociedade, o judaísmo não poderia escapar dessa influência. Por isso, é muito difícil desconstruir essa visão da diversidade sexual e de gênero em um setor da comunidade judaica que tem uma vivência mais rígida e fechada.

Para ajudar pessoas judias LGBTQIA+ que vêm dessas comunidades mais tradicionalistas, grupos e organizações como as já citadas anteriormente que lidam exclusivamente com esse público, tentam trazer uma experiência judaica que preserve o ambiente em que essas pessoas cresceram, mas adaptado à uma realidade possível para pessoas LGBTQIA+.

Além disso, as próprias comunidades ortodoxas aos poucos vão sentindo o aumento da presença de pessoas que se assumem e se recusam a guardar sua identidade LGBTQIA+. Esperamos que em alguns anos, a presença de pessoas LGBTQIA+ nessas comunidades e com a ajuda dessas organizações que trabalham em prol da comunidade judaica LGBTQIA+ ortodoxa, possam fazer as lideranças ortodoxas repensarem a forma que lidam com essa questão e tornar a experiência judaica dessas pessoas, possível e não limitadora.

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