O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão fiscalizador do Poder Judiciário em âmbito nacional, decidiu, no último dia 14 de novembro (terça-feira passada), editar normativa a fim de proibir que juízes recusem requerimentos de adoção, guarda ou tutela de crianças e adolescentes com fundamento na orientação sexual ou na identidade de gênero do solicitante, seja ele casal ou família monoparental (isto é, família constituída por uma só pessoa).
A decisão, adotada durante a 17ª Sessão Ordinária do Plenário do CNJ, a partir de questionamento de junho deste ano do senador homossexual Fabiano Contarato (PT-ES), foi unânime, o que demonstra a convicção dos quinze membros que compõem o Conselho. Em sede do Ato Normativo nº 0007383-53.2023.2.00.0000, foram promovidas análises e debates do tema com a colaboração de entidades e grupos de apoio às famílias, a fim de dar subsídios ao encaminhamento da questão.
Alinhada a esta decisão, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), ente correicional deste órgão em nível nacional, também já havia estabelecido, em 23 de agosto deste ano, a proibição, por promotores de justiça, de discriminar a orientação sexual e a identidade de gênero de solicitantes, sejam eles casais ou famílias monoparentais, em ações judiciais de adoção, guarda ou tutela de crianças e adolescentes.
Além disso, por meio da Resolução nº 269 de 22 de agosto de 2023, o CNMP criou o dever dos chefes dos promotores de justiça (Procuradoria-Geral) e dos órgãos de fiscalização (Corregedorias-Gerais) de adotarem todas as medidas que considerarem necessárias para fazer cessar as práticas discriminatórias de seus membros (promotores de justiça) e servidores (analistas, oficiais de promotoria, etc.), em respeito às diferentes composições familiares. Estas medidas não se restringem ao processo de adoção, se estendendo ao processo de habilitação – momento essencial para conhecer as motivações e expectativas da família, bem como verificar seu preparo.
Medidas como essas podem parecer simples, mas são essenciais para a garantia de uma cidadania plena para a população LGBTQIA+. Basta lembrar, por exemplo, que a discriminação por orientação sexual só foi derrubada no ordenamento jurídico brasileiro muito recentemente, no histórico julgamento da Arguição de Descrumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos dias 4 e 5 de maio de 2011. Naquele julgamento, o STF determinou que as uniões estáveis homoafetivas tinham o mesmo valor jurídico das uniões estáveis heterossexuais, em que pese não tenham sido prescritas expressamente em nossa Constituição Federal. Entre as ratio decidendi do nosso Tribunal, estava as seguintes: de que o rol de família do artigo 226, § 3º, CF/1988 era um rol exemplificativo, não taxativo, de modo que, não tendo sido expressamente citada a união homoafetiva, por se tratar de tema de direito civil, aquilo que não era proibido pela lei, não poderia deixar de receber proteção jurídica pelo Estado, até mesmo em razão de constituírem o pluralismo político, a liberdade, a intimidade e a vida privada valores positivos de nossa sociedade.
Dali em diante, os Tribunais de Justiça de cada estado do país passaram a editar normativas determinando que os cartórios de suas respectivas competências estavam proibidos de se recusarem a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Pouco a pouco, esse movimento pela igualdade foi tomando corpo. Dois anos depois, a partir da compreensão de que a união estável deve ter sua conversão em casamento facilitada, nos termos do disposto no artigo 226, § 3º, da CF/1988, o CNJ regulamentou a Resolução nº 175 de 14 de maio de 2013, passando-se a proibir a recusa por Registros Civis de Pessoas Naturais, em âmbito nacional, de registrarem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Podemos entender, assim, a fragilidade da cidadania LGBTQIA+. Até dez anos atrás, nos era negado um direito civil básico, que é o de constituir família, bem como as consequências dele, que são a transmissão de patrimônio para os descendentes, de poder amparar o cônjuge durante os piores momentos de necessidade (por exemplo, mediante plano de saúde compartilhado, ou na qualidade de acompanhante numa ala de UTI no hospital); além disso, os direitos decorrentes do término desse relacionamento: o recebimento de uma pensão alimentícia, a disputa pela guarda dos filhos e a regulamentação de um regime de visitas.
Ainda que existíssemos e vivêssemos apenas de facto nossos arranjos familiares, afinal nunca dependemos da aprovação do direito para estarmos presentes na sociedade através dos séculos, a realidade é que a discriminação pelo Estado nos deixou marcas, na medida em que nos obrigou a criar estratégias de sobrevivência que demandavam de nós alguma assimilação. É comum conhecer histórias daqueles que viveram vidas duplas até muito recentemente ou que esconderam sua autenticidade, a fim de não se destacar da sociedade em geral. Isso se deve ao fato de que nosso valor está atrelado ao reconhecimento (ou à ausência dele) pela sociedade e, consequentemente, pelo Estado. Enquanto comunidade, temos percorrido um caminho de emancipação, marcado por momentos difíceis, como a epidemia da Aids, mas também por momentos de celebração, como as Paradas do Orgulho, que nos lembram de onde viemos e para onde queremos ir. Longe de significar um desvalor, afirmar nossa autenticidade apartada de um modelo cisheterossexista de autorrealização é possível, sem abdicar da igual proteção e reconhecimento do Estado.