Conquista coletiva

Bahia realiza primeira mastectomia pelo SUS sem ação judicial: ‘Foi um renascimento’, diz Rafiki

A transição começa com o olhar que se reconhece no espelho.
A transição começa com o olhar que se reconhece no espelho. | OpenAI, em 2 de maio de 2025.

No dia 5 de abril de 2025, o Sistema Único de Saúde da Bahia (SUS/BA) deu um passo inédito e histórico em favor da população trans. Pela primeira vez, foi realizada uma cirurgia de mamoplastia masculinizadora — popularmente conhecida como mastectomia — por via administrativa, ou seja, sem a necessidade de recorrer à Justiça. O procedimento aconteceu no Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES), em Salvador, dentro do escopo do Processo Transexualizador do SUS, regulamentado desde 2013 pela Portaria nº 2.803.

O beneficiado foi Rafiki Maia, de 49 anos, torcedor apaixonado do Esporte Clube Bahia e presença ativa no TikTok, onde compartilha vídeos sobre sua transição de gênero e sua recuperação pós-cirúrgica. Em entrevista exclusiva ao Observatório G, ele contou com emoção como viveu o processo, desde o início do acompanhamento até a realização do sonho — que aconteceu um dia após o seu aniversário.

“Me internei no dia 4 de abril, no dia do meu aniversário, e a cirurgia foi realizada no dia seguinte. Foi uma felicidade imensa saber que eu não precisei entrar com processo judicial, que tudo aconteceu pelo trâmite administrativo do SUS. Isso mostra que estamos avançando”, celebrou.

Rafiki Maia

Um sonho antigo, agora realizado

Desde muito jovem, Rafiki já carregava dentro de si a certeza sobre quem era, mesmo que o espelho e as expectativas alheias não correspondessem a essa identidade. Ele relembra esse sentimento com clareza e firmeza, destacando que sua vivência como menino sempre esteve presente, mesmo quando seu corpo ainda não refletia essa verdade

“Sempre me vi realmente um menino. Em todos os aspectos. Os ‘intrusos’, como a gente chama, eram partes que não pertenciam ao meu corpo. Nunca pensei em mutilação, mas sabia que um dia faria essa cirurgia. Cheguei a malhar bastante para tentar disfarçar, até que surgiu essa oportunidade.”

O caminho até a cirurgia foi trilhado com paciência e dedicação. Ele conheceu o CEDAP (Centro Estadual de Diagnóstico, Assistência e Pesquisa) em 2019, mas só iniciou a transição hormonal em 2021, após se recuperar de uma cirurgia no quadril. Desde então, foi acompanhado por uma equipe multidisciplinar, formada por endocrinologista, psicólogo, assistente social e outros profissionais. Em outubro de 2024, foi finalmente chamado para realizar os exames pré-operatórios e agendar a cirurgia.

Liberdade para ser quem se é

Para Rafiki, o processo de transição de gênero é profundamente pessoal e atravessa dimensões que vão muito além da aparência física. Embora a cirurgia represente uma etapa importante para o alinhamento entre corpo e identidade, ele destaca que o transicionamento é um processo contínuo de afirmação, reconhecimento e autonomia. Em uma sociedade marcada por preconceitos e normas rígidas de gênero, cada conquista — como acessar o sistema de saúde ou simplesmente poder se olhar no espelho com tranquilidade — carrega um peso simbólico e emocional imenso. Mais do que estética, trata-se de dignidade, de saúde mental e de liberdade.

“É uma questão de liberdade. De poder vestir uma camisa branca, estar na academia e não chamar atenção. De ser quem eu sou, com segurança. Isso vai me trazer muito na vida social e emocional. Ainda não penso no impacto afetivo, porque sempre me relacionei com pessoas que me respeitam. Mas sei que me sinto mais livre.”

Questionado sobre outras cirurgias durante a entrevista, como a histerectomia — que é a retirada do útero — e a neofaloplastia — que consiste na construção de um falo com tecidos de outra parte do corpo —, Rafiki é direto.

“Não tenho interesse. Minha masculinidade vai além de um órgão genital. Desde que comecei a hormonização, essa vontade não existe mais para mim.”

Recuperação, fisioterapia e apoio do SUS

O pós-operatório também faz parte desse processo de reconhecimento do próprio corpo, exigindo não apenas paciência, mas dedicação diária aos cuidados com a saúde. A recuperação envolve etapas que precisam ser seguidas com atenção para garantir os melhores resultados e preservar o bem-estar. Pensando nisso, ele já iniciou sessões de fisioterapia e se prepara para as drenagens que serão realizadas no CEDAP nas próximas semanas.

“Você fica um tempo sem conseguir levantar os braços, sente como se estivessem pesados. Já estou fazendo alguns exercícios em casa, com orientação da minha fisioterapeuta. A fisioterapia formal começa agora, e vai me ajudar bastante.”

Ele também relembrou um episódio de transfobia que enfrentou em uma academia, quando ainda treinava antes da cirurgia. O desconforto causado pelos olhares e comentários maldosos enquanto treinava de camiseta — com pessoas fazendo observações sobre os ‘intrusos’ marcando na roupa — o levou a procurar outro espaço para treinar.

“Teve um cara que fazia piadas, era transfóbico, homofóbico. Eu preferi sair e não passar mais por isso. Às vezes a gente só quer treinar em paz.”

Rafiki Maia

Uma conquista coletiva

A realização da cirurgia de mastectomia sem a necessidade de judicialização representa um marco para a comunidade trans na Bahia, que há décadas enfrenta barreiras burocráticas para acessar seus direitos e realizar o sonho de se reconhecer diante do espelho — e sentir-se livre para fazer coisas corriqueiras, como ficar sem camisa em uma praia..

“Quero usar essa visibilidade para ajudar outras pessoas. Brinco com minha mãe que minha inquietude agora é essa quietação da recuperação. Mas assim que puder, quero propagar essa vitória.”

Direitos e renascimento

Rafiki também faz questão de lembrar que o afastamento do trabalho para a realização de cirurgias é um direito garantido por lei, independentemente do motivo. Ele destaca, ainda, que não enfrentou problemas em seu ambiente de trabalho durante esse processo, o que considera um privilégio diante da realidade de muitas pessoas trans.

“É como qualquer outra cirurgia. Você tem atestado, pode acionar o INSS se precisar de mais dias. Nenhuma empresa pode negar isso.”

Por fim, em meio a tantas transformações, Rafiki compartilha um detalhe que carrega profundo simbolismo: a escolha do seu nome. Com carinho e orgulho, ele relembra o momento em que decidiu como gostaria de ser chamado, um gesto que representa não apenas identidade, mas também afeto, força e pertencimento.

“Tinha uns 18 anos quando assisti O Rei Leão, em 1994. Me apaixonei pelo personagem Rafiki e fui atrás do significado: amigo leal, companheiro. Guardei isso comigo. Quando retifiquei meus documentos em 2021, foi como um renascimento. Depois ainda assisti ao filme queniano Rafiki, que só confirmou tudo. Esse nome era meu, só faltava nascer de novo.”

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