O Projeto de Lei nº 5.167/2009 é um verdadeiro estorvo. Conhecido como o projeto que proíbe o casamento gay 1 , ele é composto por dois artigos. O único substancial é o segundo, que afirma expressamente que “nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar”.
Se em toda a sua história, a maioria dos parlamentares nunca teve a coragem e a decência de enfrentar o tabu da sociedade brasileira, a ponto de legislar a favor dos direitos das minorias sexuais, autorizando que casais compostos por pessoas do mesmo sexo tivessem os mesmos deveres e obrigações que casais de heterossexuais, também jamais deve a audácia e a perversidade de proibir que buscassem sua felicidade.
No direito civil, diferente do direito público, impera um princípio segundo o qual tudo o que não é proibido é permitido. Como não era proibida a união estável entre casais de pessoas do mesmo sexo, casais de homossexuais, bissexuais ou de tantas outras identidades não adequadas às normas de gênero passaram a pleitear a equiparação de seus direitos perante o Judiciário.
Ao longo das décadas de 1990 e 2000, a jurisprudência brasileira avançou e, pouco a pouco, passou a abrigar esses pedidos, deixando de entender que se tratavam de uniões de fato, isto é, de sociedades empresariais, logo submetidas a regras empresariais ou de direito civil, e passaram a entendê-las como sociedades regidas pelo afeto. Daí o neologismo de “relações (ou relacionamentos) homoafetivas(os)”.
Em consequência, essas ações judiciais passaram a ser analisadas por juízes especializados em questões familiares. Com a consolidação da jurisprudência dos tribunais de justiça estaduais em favor da igualdade de direitos entre casais homo e heterossexuais, em 5 de maio de 2011 o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 132, que serviu para uniformizar, no âmbito nacional, o entendimento de que casais merecem o mesmo tratamento jurídico, independentemente de sua orientação sexual.
Na prática, o STF interpretou o artigo 226, § 3º, da Constituição de 1988 como um rol exemplificativo: “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Os ministros entenderam que a Constituição não proibiu a união homoafetiva e, como um documento inscrito no tempo, ela deve ser atualizada por meio da interpretação integrada de seus princípios e da intenção do legislador.
E o resto é história. Tendo como fundamentos a proteção de garantias e princípios fundamentais como a igualdade, a liberdade, a dignidade da pessoa humana e a privacidade, há pouco mais de 12 anos, o STF deu um primeiro grande passo rumo ao reconhecimento de direitos da comunidade LGBTQIA+ no Judiciário; e, hoje sabemos, também contribuiu de forma decisiva para o aumento das críticas à sua politização.
II
Essas linhas não conseguem e nem pretendem captar as décadas de lutas do movimento social, desde o movimento homossexual dos anos 1980 até a sopa de letrinhas dos anos 2010 e 2020. A verdade é que o reconhecimento de direitos por parte do Judiciário só ocorreu porque muita gente pôs a cara no Sol em paradas do Orgulho que se espalharam pelo Brasil todo – com destaque para a de São Paulo, considerada até hoje a maior do mundo.
Essas mobilizações se conectaram com a luta do movimento de Hiv/aids contra a epidemia, que, desde os anos 1980, dizimou aproximadamente 350 mil pessoas apenas no Brasil e, ainda hoje, mata quase 10 mil pessoas todos os anos. Ao mesmo tempo, o movimento tem exigido visibilidade para as demandas de pessoas travestis, transexuais, não-bináries e de outras identidades trans na sua luta pelo acesso a um processo transexualizador gratuito, público e de qualidade, pelo uso do banheiro livre de opressões, por inserção nos estudos e no mercado de trabalho, bem como outras pautas básicas de direitos civis.
Acredito que uma das marcas fundantes da comunidade LGBTQIA+ é exatamente essa ideia de que só avançamos juntos em nossas diferenças. Portanto, a luta de um, é a luta de todos nós, pois se trata de uma comunidade que luta por inclusão e respeito, por ampliação de direitos e a consolidação de um conceito de cidadania não excludente.
III
Nessa medida, o Projeto de Lei nº 5.167/2009 merece o repúdio de todos nós. Não passa de um estorvo e de um engodo. É um estorvo porque em nada se coaduna com os princípios e garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988. Ele ignora completamente as razões que fundamentaram (a ratio decidendi) a deliberação dos ministros no Plenário do Supremo Tribunal Federal entre os dias 4 e 5 de maio de 2011.
A equiparação entre casais responde ao imperativo da liberdade, na medida em que as pessoas são livres para “escolherem” e desenvolverem suas vidas de acordo com sua orientação sexual, e não com uma imposição externa de vontade. Além disso, responde aos imperativos da igualdade, na medida em que veda discriminação injustificada de pessoas em igual situação de direitos e deveres, e da privacidade, pois impede que o Estado se intrometa sobre um assunto de foro privado, já que os envolvidos não causam danos a terceiros.
A equiparação entre casais responde, ainda, aos imperativos da promoção da dignidade humana, que nada mais é do que o entendimento de que as pessoas não devem ser instrumentalizadas para a obtenção de finalidades externas a elas, ou seja, elas são detentora de um valor intrínseco a si mesmas.
Este, me parece, é o argumento mais importante e de mais difícil compreensão para os inimigos do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Na semana passada, o Dep. Pastor Isidório (Avante-BA) fez uma defesa do PL 5.167/2009 com um discurso um tanto quanto apelativo para muitas pessoas de baixa instrução, ou com viés religioso. Em resumo, disse que homem nasce com pênis e mulher com vagina. Logo, para ele, nada pode mudar isso, mesmo com cirurgias. A essência da pessoa continua a mesma.
Diante dessa fala, cujo teor tem claro aspecto homotransfóbico, fica evidente uma visão de mundo que pode ser considerada finalística e que não se sustenta em pé, não importa de qual perspectiva se olhe.
Ora, se o homem é quem tem “pênis”, os homens que tiveram seu membro decepado perdem
a condição original de homem? E a mulher que precisa retirar ovário, útero e trompas de falópio, em razão de alguma enfermidade, deixam de ser mulheres? E se retirarem a mama, se tornam meio-mulheres?
Falas como esta reduzem seres humanos a suas funções reprodutoras e acabam por eliminar qualquer aspecto de humanidade de pessoas que, felizmente nos dias atuais, significam muito mais para nossa sociedade, do que sua capacidade, ou não, de gerar filhos! A propósito, pela lógica dessa gente que se diz cristã, os órgãos sexuais só servem para a procriação. O pênis e a vagina nasceram para a penetração. Quem quiser se masturbar ou ter um sexo recreativo, pode esquecer.
Segundo essa lógica, não são apenas as lésbicas, os gays, os bissexuais, travestis, transexuais, e outras identidades não conformantes que deveriam se preocupar com o castigo eterno. Mas será que esse discurso tão fervoroso se reflete num Projeto de Lei para proibir as práticas sexuais não reprodutivas? Ou apenas contra as identidades sexuais que convenientemente lhes servem de bode expiatório, alvo fácil para angariar votos e caçar likes em redes sociais, como quando espalhavam fake news sobre ditadura gay, mamadeira de piroca ou kit gay?
É importante manter-se atento ao engodo: a propósito, o PL nº 5.167/2009 foi apensado ao PL nº 580/2007, de autoria do falecido Dep. Clodovil Hernandes, que propunha justamente a legalização da união civil para pessoas do mesmo sexo no Brasil. Veja como os reacionários se apropriaram de uma pauta justa e legítima, para tentar aprovar um retrocesso sem tamanho. Gastam nosso dinheiro e nosso tempo discutindo algo que, uma vez debatido, deveria ser legalizado, isto é, deveriam incorporar ao Código Civil a equiparação de direitos e deveres entre casais heterossexuais e casais de pessoas do mesmos sexo, coisa que o Supremo Tribunal Federal já garante de forma precária, por meio de um julgamento há mais de 12 anos.
Por fim, se aprovado o PL nº 5.167/2009, será um natimorto. Lula jamais o sancionará. Ainda que o veto presidencial seja derrubado pelo Congresso Nacional, logo em seguida será alvo de questionamento no Judiciário pela via adequada. Invariavelmente, tornada Lei, será declarada inconstitucional, por violar o entendimento já pacificado pelo próprio STF.
Thales Antico Coimbra, estudante de filosofia pela Universidade Federal de São Paulo; é
advogado e mestre em direito pela Universidade de São Paulo; fundou e coordenou o Geds –
Grupo de Extensão em Direito e Sexualidade da Faculdade de Direito da USP (2009-2015).