As relações sociais se estabeleceram, sobretudo, pelos vínculos para a manutenção e sobrevivência da vida humana. Os próprios filósofos antigos entenderam que não é possível viver integralmente isolado, sem quaisquer laços afetivos. Aliás, nós dependemos do outro para sobrevivência. Nesse sentido, papéis sociais foram estabelecidos, seja por uma questão de eficiência para executar determinada atividade ou por tendências biológicas, nós somos sim colocados em caixinhas e sofremos retaliação quando as rompemos.
Conforme o entendimento de Élisabeth Roudinesco, psicanalista francesa, na sociedade romana a questão biológica não é levada em consideração no assunto de paternidade. Lá o que vogava era mais uma questão de autoafirmação e laços de afetividade – “Eu sou pai e vou cuidar”.
Parte da personalidade é formada nos primeiros anos de vida do sujeito por meio do convívio com outras pessoas, de modo que o primeiro convívio se dá no lar, núcleo primário de sociabilidade. Para Winnicott, o mais importante é a participação proficiente dos cuidadores na vida da criança, presença e ação. Pessoas reais, que integram e mantêm o ambiente total, que viabilizam que aconteçam experiências que de fato contam, para o bebê, como experiências reais.
Felizmente evoluções aconteceram e a adoção para casais homoafetivos é admitida por lei em nosso país desde março de 2015 como adoção homoparental, regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pelo Código Civil e reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal.
Para discutir mais amplamente sobre filhos de casais homossexuais e a criação, o Observatório G conversou com a psicóloga Amanda Ferreira, que nos concedeu as suas observações acerca do tema.
Acredito que na Psicanálise falamos em função paterna e função materna. Como duas mães, por exemplo, podem incorporar tais funções?
A parentalidade não é uma função instintiva, ou seja, ela precisa ser vivenciada, aprendida para tomar forma. Desta forma, a função materna e paterna não está relacionada a pessoa “pai” e pessoa “mãe”, mas sim a qualquer pessoa que se disponha emocionalmente a investir nessa relação através do cuidado, do amor e da adaptação ativa às necessidades da criança. A psicanalista Vera Iaconelli elenca como função parental o seguinte: tratar o bebê como semelhante, prover educação, transmitir a história familiar, dar nome e sobrenome, apresentar a lei, responsabilizar-se e amar. Essas funções quando ocupadas por alguém disposto a bancá-las contribui para que a criança se desenvolva de forma segura e autônoma. Assim como com os casais parentais heteroafetivos, os casais parentais homoafetivos vão fazer um movimento de descoberta com seus bebês ou crianças, e aos poucos vão entendendo e exercendo as funções que a eles faz maior sentido. Não quer dizer que uma pessoa só vai exercer a função materna o tempo todo e a outra a função paterna, esses lugares não são fixos e sim dinâmicos e vão depender também da configuração de cada família. O importante é que essas funções sejam bem sustentadas.
É possível dizer que uma criança criada por dois pais, por exemplo, terá uma falta inconsciente de uma figura feminina?
Tem uma frase que eu gosto bastante que diz “é preciso uma aldeia para criar uma criança”, e acho que ela cabe bem nessa questão, pois o desenvolvimento social e psíquico de uma criança envolve também toda a comunidade que está ao seu redor. As crianças vão construir relações para além de seu núcleo familiar, seja com a família estendida, na escola, com amigos ou até mesmo com veículos de mídia e, consequentemente, vão ter outras possibilidades de identificação e outras lentes para enxergar o mundo. Nossos pais nunca vão ser capazes de suprir todas as nossas necessidades, até porque isso não seria tão interessante, a falta também faz parte da nossa existência.
Historicamente, a família se apresenta como uma instituição com possibilidades de mudanças. Do ponto de vista da psicologia, estas mudanças são positivas?
As mudanças fazem parte de toda a história da humanidade, e são movidas por aspectos culturais, econômicos, políticos, sociais, biológicos e até mesmo ambientais. Tivemos muitas mudanças impulsionadas pelos movimentos feministas, e acredito que essas são mudanças muito significativas no que tange a uma maior igualdade de gênero e possibilidade de uma diversidade social ainda maior. É claro que diante de cada mudança nos deparamos também com novos desafios e necessidades de reorganização e readaptação social, mas esse é um movimento que compõe a forma como nós nos organizamos enquanto sociedade e, nesse sentido, positiva.
A sociedade ainda tem uma resistência com a configuração familiar formada por pessoas do mesmo gênero. Como os pais podem ajudar o filho, sobretudo quando ele começar a frequentar a escola?
Acho que é importante fortalecer essa criança desde a mais tenra idade para que ela possa se situar frente a esses desafios com segurança. Isso envolve possibilitar um ambiente em que ela se sinta acolhida e segura para falar como se sente, fazer perguntas e contar suas experiências.