Por Luis Gustavo Reis*
O protagonista deste texto tem um nome alongado: Charles-Geneviève-Louis-Auguste- André-Timothée d’Éon de Beaumont. A extensão do nome evidencia a singularidade desse francês que viveu durante 82 anos, sendo 49 deles como homem e 33 como mulher num período conturbado da história europeia. Por falar em história, vamos a ela.
Nascido em 1728, no vilarejo de Tonnerre, província da Borgonha, amigos e familiares o chamavam de Chevalier D’Eon. Filho de Louis Deon de Beaumont, conceituado advogado e conselheiro da realeza, seu pai tinha trânsito livre na corte de Luís XV, o monarca que governou a França por quase seis décadas.
Até completar 7 anos de idade, Chevalier D’Eon, menino franzino e esquálido, era vestido como menina, usava cabelos longos e o rosto carregado de blush. O figurino era escolhido pela mãe com total aprovação do pai, que pouco interferia nas escolhas da esposa desejosa de ter parido uma mulher. Vestir as crianças com roupas femininas, nesse período da história francesa, era costume comum entre várias famílias.
Ainda na adolescência, Chevalier D’Eon migrou para Paris onde estudou em colégios conceituados. Finalizado o ensino regular, ingressou na faculdade e se formou em direito para homenagear o pai – morto anos antes em um trágico acidente de carruagem.
A formação em direito e a reputação do patriarca abriram portas generosas ao nosso personagem, incluindo um cargo na Generalite de Paris, o respeitado corpo burocrático de Luís XV.
Embora ocupado com questões do governo, Chevalier D’Eon escrevia diversos artigos em jornais, publicava livros sobre o sistema tributário francês, participava de corridas de cavalo e ainda encontrava tempo para praticar esgrima, esporte que lhe renderá benefícios ao longo da vida.
Observado de perto por Luís XV, D’Eon foi galgando postos importantes no alto escalão da realeza. Os serviços prestados renderam frutos graúdos, como o recrutamento para o “Secret du Roi” (Segredo do Rei), uma rede de espionagem secreta acompanhada diretamente por funcionários graduados da corte.
Rússia
A primeira missão de D’Eon como espião foi em 1756, na Rússia, quando se passou por secretária da Embaixada Francesa. O objetivo da empreitada era profícuo: estabelecer contato direto com a Imperatriz Isabel da Rússia, ganhar a confiança da monarca e costurar alianças entre russos e franceses para lutar contra a arqui-inimiga Inglaterra.
A missão exigia mobilizar estratégias inteligentes para ser bem-sucedida. Sem receio de levantar suspeitas, Chevalier D’Eon extrapolou um desejo que não pertencia apenas a sua falecida mãe: vestiu-se de mulher, adotou o nome de Lia de Beumont e ofereceu serviços de leitura à Imperatriz. A proximidade com Isabel ocorreu sem maiores sobressaltos, pois Lia Beumont convenceu os cortesãos de que era irmã de um antigo cavaleiro respeitadíssimo no Império Russo.
Os que transitavam pelos corredores do palácio ouviam, frequentemente, as gargalhadas da Imperatriz Isabel enquanto conversava com sua “nobre e estimada amiga” – ninguém menos que Chevalier D’Eon, travestido da leitora Lia Beumont.
Vestimentas
A maquiagem carregada, brincos discretos e os trajes femininos acompanharam D’Eon durante a longa estadia no império dos cossacos. Frequentava reuniões da realeza, lugares públicos, grandes bailes e paradas militares sem despertar qualquer desconfiança. Mas o segredo da missão e a própria identidade do personagem seriam revelados por ele mesmo, talvez consternado pelo tamanho da estima e abertura devotada pela Imperatriz.
Numa tarde, após caminharem pelos jardins do opulento Palácio de Catarina, Chevalier D’Eon decidiu tirar as máscaras e revelar sua identidade. Sentou-se num banco, segurou nas mãos de Isabel, olhou no fundo dos olhos da soberana e revelou que seu nome verdadeiro era Charles-Geneviève-Louis-Auguste-André-Timothée d’Éon de Beaumont. Disse que estava à serviço do rei Luis XV, cujo propósito era estabelecer laços de amizade entre França e Rússia contra a Inglaterra. Estupefata, Isabel não acreditou no falatório e quis conferir o sexo do falsário. Como num átimo, D’Eon fugiu em debandada e retornou às pressas para França.
De volta ao país natal, meados de 1760, foi nomeado por Luís XV como capitão da Cavalaria Militar e enviado para linha de frente da Guerra dos Sete Anos, uma série de conflitos entre França e seus desafetos, Inglaterra e Prússia sobretudo, que durou de 1756 até 1763. Embora tenha sido ferido durante a guerra, voltou do campo de batalha ovacionado. Recebeu condecorações, honras militares e uma nova missão: vestir novamente as credenciais de agente secreto e se infiltrar em território inimigo: realeza inglesa.
Charles D’Eon desembarcou em Londres como alto funcionário da Embaixada Francesa, experimentando os sabores da luxuosa vida britânica. Com o tempo, costurou relações consistentes até chegar às barbas do rei inglês, George III, de quem surrupiou dezenas de documentos secretos sumamente importantes para França. O serviço rendeu frutos ao espião: a raríssima Ordem Real e Militar de São Luís, concedida diretamente por Luís XV em cerimônia ostentosa.
Com o êxito do roubo, D’Eon foi incumbido de novas missões na Inglaterra. Mas a vida opulenta, os gastos excessivos e as séries de escândalos que se envolveu macularam sua imagem. Ao tomar conhecimento das estripulias do súdito, Luís XV o destituiu do cargo e exigiu seu retorno imediato ao país gaulês. Sem dar ouvidos ao rei, ameaçou revelar os motivos de sua estadia na Inglaterra e os segredos de Estado da monarquia francesa caso não tivesse seu posto
restabelecido.
Caçada
Furioso, Luís XV ordenou uma caçada brutal ao espião, que após sucessivas tentativas de assassinato e prisão escapou ileso. Travestido de mulher, contava com refúgios seguros na casa de amigos influentes e transitava insuspeito pelas agitadas ruas londrinas. Nesse período, publica uma autobiografia relacionado sua vida aos eventos da realeza francesa. Em pouco tempo, devido ao sucesso de vendas, o livro estava esgotado e o autor alçado ao posto de personalidade britânica.
O êxito do livro rendeu entrevistas em jornais, reconhecimento público e até o perdão de Luís XV, que considerou mais prudente ter D’Eon como aliado do que inimigo – o desafeto sabia de informações que poderiam deixar o monarca em maus lençóis.
Em 1767, é readmitido na organização “Secret du Roi” e retoma seus trabalhos como espião. Porém, antes de reassumir o cargo, impõe algumas condições: adotaria o nome “Mademoiselle D’Eon”, o título de “embaixadora” e estaria sempre vestida de mulher sem precisar ocultar seu gênero. Astuto, D’Eon usou uma estratégia brilhante: fazer uma transição pública de gênero sem perder a popularidade que gozava. Além disso, publicou um longo texto nos principais jornais franceses dizendo que sempre foi mulher, mas que precisou fingir ser homem devido à natureza do trabalho de espião.
A partir de então, sepultou definitivamente Charles-Geneviève-Louis-Auguste-André-Timothée d’Éon de Beaumont. Não só ele, mas também a máscara Charles D’Eon que ofuscava o brilho de Mademoiselle D’Eon.
Nas ruas de Paris, Mademoiselle D’Eon andava sempre muito bem-vestida e despertava a atenção dos pedestres. A barba malfeita não sobrepunha a pesada maquiagem; as pernas peludas passavam despercebidas devido aos longos vestidos de seda; e os braços, musculosos e rijos, pouco sobrepujavam o brilho nos olhos e o sorriso leve daquela mulher altiva. Convidada com frequência para as melhores festas do reino, D’Eon era considerada a dama da corte francesa.
Em 1774, um ano após a morte de Luís XV, D’Eon recebe do sucessor do trono, Luís XVI, uma nova missão: recuperar um estratégico livro de anotações que fora roubado da realeza. Apesar dos esforços, a espiã fracassou na incumbência e passou amargar sucessivos insucessos: perdeu o emprego, o salário, contraiu dívidas e suas habilidades foram colocadas em xeque. Além disso, assistiu a extinção da organização onde serviu por longos anos: a “Secret du Roi” (Segredo do Rei), que congregava alguns amigos que poderiam salvar sua reputação e lhe arrancar da penúria.
Como forma de sobrevivência, começou a participar de duelos de esgrima. Lutava contra homens de todas as idades, sempre observada por um público ávido pelos movimentos e golpes que desferia. Uma das batalhas mais memoráveis que travou foi na Inglaterra, numa viagem feita a convite de amigos. O adversário era Chavalier Saint-Georges, violinista e músico pessoal do Príncipe de Gales, notório amante da esgrima. Mademoiselle D’Eon não apenas ganhou o combate como foi aplaudida de pé e convidada pelo próprio Príncipe de Gales, Jorge, para passar alguns dias no palácio real.
Enquanto participava de apresentações de esgrima na Inglaterra, sua casa na França foi invadida por soldados à mando do rei Luís XVI. Temeroso do potencial destrutivo de D’Eon, o monarca ordenou que vasculhassem cada cômodo da moradia em busca de documentos que pudessem comprometer a monarquia francesa. Na batida, centenas de papéis confidenciais e cartas secretas foram confiscados.
Banida da França e impedida de regressar ao país precisou refazer a vida na Inglaterra. Em 1796, após completar 68 anos, foi gravemente ferida – teve os pulmões perfurados – durante uma batalha de esgrima. Recuperada meses depois, ensaiou escrever um novo livro ainda mais bombástico sobre episódios secretos do reinado de Luís XV, mas a empreitada naufragou devido a um AVC que paralisou membros de seu corpo.
Até que chegou o dia 21 de maio de 1810, data em que Mademoiselle D’Eon adormeceu e nunca mais acordou. Morreu aos 82 anos de idade, dormindo, serena, tomada pela mesma altivez que a acompanhou durante toda a jornada de vida. Seu nome, D’Eon, entrou para história: virou símbolo de travestismo masculino. É daí que deriva, inclusive, o termo “eonismo” que significa “adoção de vestimentas e maneiras femininas por um homem”.
A trajetória de Mademoiselle D’Eon é referência obrigatória aos que almejam construir uma sociedade do respeito, livre de qualquer tipo de discriminação. Ao experienciar as desventuras de seu tempo, colaborar com a realeza, impor suas vontades e viver sempre como protagonista, jamais como vítima, mostrou ao mundo que gênero não é sinônimo de vilania ou heroísmo, e que jamais deve ser prerrogativa nas relações humanas. Além disso, a história de D’Eon revela a complexidade e a ambiguidade de cada indivíduo, que pode assumir múltiplas características ao longo da vida. Antes de qualquer outro predicado, cabe ressaltar, D’Eon foi ser humano.
*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros escolares e coautor do livro Ensaios incendiários sobre um mundo normatizado (2021).