Por Thales Antico Coimbra
Ligada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Governo Federal do Presidente Lula, o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers, Intersexos, Assexuais e Outras – CNDLGBTQIA+ decidiu atualizar as normas que tratam do atendimento da comunidade LGBTQIA+ em órgãos de segurança pública, como delegacias de polícia. A Resolução nº 1 de 19 de setembro de 2023 veio para substituir a antiga Resolução nº 11 de 18 de dezembro de 2014. Neste artigo, pretendo analisar as inovações trazidas por essa normativa e seus efeitos para a vida dos membros de nossa comunidade.
Antes de tudo, é importante entender que o CNDLGBTQIA+ é um órgão mais ou menos novo. Não é novo na medida em que sua criação ocorreu há mais de 20 anos atrás pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, por meio do Decreto federal nº 3.952/2001. O Conselho foi aperfeiçoado durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva por meio do Decreto federal nº 5.397/2005, quando passou a contemplar especificamente a então questão “GLTB” (artigo 2º, inciso III). Ao final do segundo mandato do presidente Lula, passou a existir a existir sob o nome de Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bisssexuais, Travestis e Transexuais – CNCD/LGBT, por força do Decreto federal nº 7.388/2010. A partir desse momento, ele ganhou natureza consultiva e deliberativa, isto é, suas resoluções não serviriam como meros conselhos, devendo ser seguidas, no que diz respeito a pensar e propor ações do poder público, em âmbito nacional, para combater a discriminação e promover a cidadania da então chamada população “LGBT”.
Por outro lado, como todos nos lembramos, entre os anos de 2019 e 2022, durante a gestão de Jair M. Bolsonaro, tudo o que representasse qualquer avanço civilizatório e democrático, especialmente em relação a direitos de minorias, sofreu fortes ataques do próprio ex-presidente. O CNCD/LGBT, enquanto órgão composto por representantes da sociedade civil, foi esvaziado. Primeiro, milhares de conselhos foram extintos por meio do Decreto federal nº 9.759/2019. Dois meses depois, o ex-vice-presidente Hamilton Mourão, por meio do Decreto federal nº 9.883/2019, reinstitui e reformulou o CNDC/LGBT, porém com uma composição considerada “chapa-branca”, isto é, mudou sua competência, não mais deliberativa, mas de mera consulta, estudo e assessoramento e articulação com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, ou seja, de subordinação.
As palavras “sexo”, “gênero”, “orientação sexual”, “identidade de gênero” e a sigla LGBTQIA+ sequer constam no decreto. Ademais, o CNCD passou a ser composto por quatro representantes do governo federal e três representantes da sociedade civil, sendo que estes eram escolhidos mediante “processo seletivo público”. Em outras palavras, além de não existir eleições abertas para os representantes da sociedade civil, os mesmos estão em menor número, de modo que a última palavra passou a ser do poder público, silenciando-se qualquer decisão que pudesse ser considerada incômoda aos olhos do governo Bolsonaro.
Não à toa, não tivemos sinais do CNCD até que, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, ele foi reformulado, por meio do Decreto federal nº 11.741/2023. Suas competências foram devolvidas, assim como a composição paritária entre representantes da sociedade civil e representantes do poder público; fortalecido, agora conta com dezenove membros tanto da sociedade civil quanto do poder público, número seis vezes maior do que na gestão de Jair M. Bolsonaro. Ressalte-se, ainda, que agora os representantes da sociedade civil serão selecionados por meio de “processo eleitoral” (artigo 4º, caput), apesar de, nesta primeira composição, terem sido selecionados mediante chamamento público (§ único). Por isso, de certo modo, como afirmei no começo do artigo, o atual CNDLGBTQIA+ tem algo de novo.
Seguindo o lema “União e Reconstrução”, do Governo Federal, temos visto um grande esforço nacional de reconstruir políticas públicas que eram bem-sucedidas e tinham sido abandonadas pela gestão Bolsonaro, como o Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida e o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. Neste sentido, a aprovação da Resolução nº 1 de 19 de setembro de 2023 pelo CNDLGBTQIA+, que trata de segurança pública para a comunidade LGBTQIA+, parece seguir esse esforço de retomar e atualizar políticas públicas que apontavam para o rumo certo, mas que acabaram abandonadas pela gestão anterior.
Partindo do seu preâmbulo, que é a exposição de motivos da normativa, temos duas novidades em relação à sua versão anterior: além do Decreto federal do nome social, promulgado por Dilma antes do golpe de 2016, há menção importante ao julgamento de 2019 pelo Supremo Tribunal Federal das ações que resultaram na equiparação da homotransfobia ao crime de racismo (ADO 26/MI 4733). Sem dúvidas, o julgamento é um marco fundamental na segurança pública, pois, até então, o combate à violência contra a comunidade LGBQTIA+ se dava via leis genéricas, isto é, sem qualificadoras e agravantes que dessem conta da gravidade do caso. No máximo, com muito esforço, alguns estados chegaram a aprovar leis que previam punições no âmbito administrativo contra a homotransfobia. É o caso de São Paulo, que conta com a Lei nº 10.948/2001, a qual prevê penas que variam desde simples advertência, passando por multas de R$ 30 mil a 100 mil, incluindo suspensão e cassação da licença estadual de funcionamento, no caso de estabelecimentos comerciais. No entanto, a efetividade das sanções previstas nessas leis sempre foi questionada em razão seja do alto valor das multas, seja da falta de estrutura administrativa das secretarias responsáveis por aplicar referidas sanções.
De volta à Resolução nº 1/2023 do CNDLGBTQIA+, seu artigo 1º traz novidades, pois busca estabelecer parâmetros para a inclusão não apenas dos termos “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “nome social”, mas também “intersexo” nos boletins de ocorrência emitidos pelas autoridades policiais. A Resolução 11/2014 não previa o termo “intersexo”, tampouco a abrangência “em todas as unidades da federação brasileira”. Esta questão de abrangência não faz muita diferença, senão explicativa, afinal o próprio artigo 1º do Decreto que institui o CNDLGBTQIA+ afirma sua competência nacional.
No parágrafo primeiro, além de explicar os conceitos de “sexo” (nele incluído a possibilidade de assinalar “intersexo”), identidade de gênero” e “orientação sexual”, inova-se também ao permitir assinalar a “expressão de gênero”, ressaltando-se que ela pode, ou não, coincidir com a identidade de gênero da pessoa. Longe de representar meros caprichos, essas informações são relevantes para a segurança pública para permitirem a compreensão dos crimes que são praticados contra a comunidade LGBTQIA+, quem são os suspeitos, quais são os locais, etc.
No segundo parágrafo, a Resolução nº 1/2023 conceitua o termo “nome social”, explicando se tratar do mecanismo de auto identificação também de pessoas transmasculinas e não binárias, e não somente de travestis e pessoas transexuais, o que constitui inovação em relação à Resolução nº 11/2014. Além disso, diferencia o nome social do conceito de apelido, na medida em que nome social diz respeito à identidade de gênero da pessoa (“em contraposição ao gênero designado no nascimento”).
O artigo 2º determina que os campos referentes à orientação sexual e à identidade de gênero não mais podem, e sim devem ser questionados pela autoridade policial. Esta diretiva é curiosa, na medida em que a Administração Pública não tem a faculdade de fazer nada, nos termos do direito administrativo. Entende-se que, se a Lei determina, deve ser feito. Ao mesmo tempo, porém, é garantido o direito à recusa, caso o declarante não deseje informar.
Em relação à identidade de gênero, deve ser respeitado o direito à autodeclaração, nos termos do parágrafo primeiro do artigo 2º, para travestis, homens e mulheres transexuais, pessoas transmasculinas, não binárias ou outras, ou seja, a própria pessoa declarante irá dizer como ela se identifica, sem que o exercício de seu direito seja condicionado à apresentação de documentos médicos ou de comprovantes de procedimentos cirúrgicos.
A suspeita de que o crime reportado foi motivado por discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero receberá um campo próprio para ser assinalado pela pessoa denunciante, nos termos do artigo 3º. Esta é uma importante inovação que não constava na normativa anterior e que permitirá mapear os crimes de ódio contra a nossa comunidade.
O registro de Boletim de Ocorrência eletrônico ou digital deve assegurar os mesmos direitos garantidos na Resolução nº 1/2023, de acordo com o parágrafo 2º, do artigo 2º. Por fim, enquanto a normativa anterior permitia que as delegacias afixassem informações com definições sobre “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “nome social”, a atual trata de transformar essa permissão numa recomendação. Novamente, acredito que, na prática, não haja diferença, se analisarmos sob a ótica do direito administrativo, segundo o qual o agente público deve agir estritamente de acordo com a lei. Assim, em havendo uma orientação, deve segui-la.
É importante entendermos que a segurança pública ostensiva, aquela polícia de rua, é de competência da Polícia Militar, que é financiada e organizada pelos Estados e pelo Distrito Federal (artigo 42 da Constituição Federal). O mesmo ocorre com a Polícia Civil, responsável pelas investigações. Portanto, o trabalho do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ da gestão Lula de atualizar a Resolução nº 11/2014 servirá para nortear a implementação de políticas públicas de cada governador para a proteção da nossa comunidade nos Estados. É nosso dever, como cidadãos pagadores de impostos, cobrar que nossos deputados e nossos governadores coloquem em prática os direitos que foram garantidos pela Resolução CNDLGBTQIA nº 1 de 19 de setembro de 2023.