O deputado Kim Kataguiri (Podemos-SP) aproveitou o seu canal do YouTube para citar o livro do jornalista Mark Lilla, ‘O Progressista de ontem e o do amanhã‘, lançado em 2018 pela Companhia das Letras. Na obra, o autor faz críticas à política norte-americana, com ênfase nos EUA pós-segunda guerra mundial. Nesta época, democratas apropriaram-se de discursos de igualdade e enfrentamento de discriminação, proteção a LGBT, negros e mulheres. Entre as décadas de 1960 e 1970, o feminismo havia se consolidado enquanto movimento político integrado a muitas outras bandeiras de lutas civis e minoritárias.
Posteriormente, em 28 de junho, de 1969, nos EUA, o evento Stonewall fez aguerrir e reverberar os direitos e as reivindicações de LGBT. *Importante pontuar que antes disso gays e lésbicas já lutavam. Theo Anna Sprüngli, ativista lésbica alemã, abordou as questões de mulheres lésbicas em um discurso em 1904. Karl Heinrich Ulrichs, advogado e escritor alemão do século XIX, já havia levantado a bandeira gay em 1867*. Posteriormente, Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1988, engendra ideais do estado mínimo.
Kim, no entanto, endossa o posicionamento de Lilla, que é de esquerda, e entende que os movimentos são sectários e não atendem às minorias, mas apenas interesses partidários. A ideia seria fazer com que esses representantes das minorias se aproximassem cada vez mais do todo, com diálogo e cidadania.
Movimentos
Isto abre um debate interessante. Falando especificamente do feminismo, acusado por antifeministas de propagar a revolução sexual, que, pelo nome, parece se tratar de um monte de gente fazendo sexo com posições revolucionárias, mas refere-se aos direitos reprodutivos das mulheres, o movimento em si foi importante. O feminismo começou como uma forma estratégica de colocar a mulher como detentora de direitos, e questionar o lugar de homens e mulheres na sociedade e as suas funções. Mary Wollstonecraft protestou contra a Constituição francesa promulgada em 1791 exatamente por este motivo, porque a mulher não foi elencada como cidadã. O feminismo como movimento articulado – epistemologias e demandas – começa no século XIX, com as sufragistas, mas há, documentadamente, registros de contribuições de mulheres que, mesmo antes das europeias dominantes do acesso acadêmico, se organizavam frontalmente contra a dominação masculina.
A grande questão é – Caso não exista um movimento de um grupo, que tenha algo em comum, como essas minorias podem reivindicar as suas demandas? As mulheres tiveram os seus papeis designados a partir de suas capacidades reprodutivas. E, mesmo partindo da premissa de que é presumivelmente mais fraca que o homem, pôde ter a oportunidade de ingressar na vida pública e seguir com mais autonomia. No século XIX, as Ordenações Filipinas (legislação importada de Portugal) permitia que o marido aplicasse castigo corporal na mulher e a matasse em caso de adultério. E o movimento tem relação na mudança social porque ele traz questionamentos, ele reivindica, ele constrói novas formas de pensar. Tem umas doidas também no meio igual a sufragista britânica Emmeline Pankhurst, que saiu botando fogo em patrimônios públicos, foi presa, fez greve de fome e rompeu com a própria filha por divergências políticas, mas o direito ao voto veio.
Dentro do movimento feminista há diferentes epistemologias. Não há e nunca terá um pensamento uníssono sobre demandas políticas, mesmo que estas sejam reivindicações só de mulheres, porque as pessoas vivenciam suas questões de forma intransferível. Ou seja, há sujeitos que incorporam o grupo e perdem as suas individualidades, mas também existe o conceito de diferenciação – você pode se unir em pautas em comum, mas manter a sua forma autônoma de pensar. Tem mulher que acha que é liberdade ficar pelada no meio da rua, mas também há quem discorde.
LGBT
O acrônimo LGBT, que a mídia gosta de chamar de LGBTQIA+, parece ser uma grande comunidade com um monte de gente repetindo as mesmas coisas, mas não é. Começou com Movimento de afirmação homossexual, depois foi para GLS, uma sigla mais de marketing. Muita coisa aconteceu, a esquerda ortodoxa não apoiou, porque a prioridade era outra, e depois a sigla foi ampliando e os partidos políticos foram levantando essas bandeiras. Nas entranhas disso tudo, há discordâncias. Muitos gays e lésbicas não são simpáticos às questões de gênero, por exemplo, que vêm se ampliando em várias partes do mundo, com linguagem neutra e afins. Eles preferem manter o conceito sexo, que é fator objetivo. Então uma minoria, sem um movimento organizado, como reivindicaria nos anos 70/80 o livre exercício à orientação sexual e os direitos concernentes a este exercício, o afeto, casamento e constituição de família? E ainda é preciso que haja a vigilância destes direitos. Por isso, pessoas com os mesmos interesses se juntam, mesmo que não seja uma comunidade “LGBTQIAP+”, com premissas idênticas, como a mídia coloca para as pessoas.
Um exemplo prático – no ciberativismo feminista, o plágio sofrido pela pesquisadora Valeska Zanello foi denunciado sobretudo entre as feministas. O psicólogo João Marques, que faz sucesso no Instagram falando sobre comportamentos masculinos, plagiou o trabalho dela e depois fez um pedido de desculpas formal. Não é preciso ter coletivo nenhum para entender que isto é ilegítimo, mas quem iria apoiar e dar vazão à história desta mulher e cobrar providências, a Carla Zambelli? Grande parte das representantes políticas de direita não dá atenção a essas questões com medo de ter em si imputado o rótulo de feminista. Na verdade, essas mulheres acabam evangelizadas em outra agenda, mesmo achando que são livres de ideologias. Para a pesquisadora plagiada, deve ter sido relevante ter com quem contar e uma voz ecoada.
A democracia é o sistema político que permite a convivência harmônica entre diferentes. Lilla analisa os erros históricos dos liberais (a esquerda, dentro do contexto americano) que abriram uma lacuna para a eleição de Donald Trump na época, o que é interessante, basta ver como bolsonaristas se aproveitam de pautas como “linguagem neutra” e outros vídeos que viralizam para ganhar munição. O autor diz que “Na política dos movimentos, as forças são todas centrífugas, incentivando a divisão em facções cada vez menores”, o que pode servir de lição para que as pessoas mantenham o senso crítico, estando em um coletivo ou não, e não percam o discernimento e nem o respeito ao contraditório, mesmo com esta política que intima à polarização. Talvez o problema não seja os coletivos/movimentos existirem, mas a forma como estão direcionando as suas políticas.