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Legislação transfóbica desafia movimento trans e aliados a investirem em resistência institucional

Thales Antico Coimbra é advogado e mestre pela USP (OAB/SP 346.804)

Publicado em 31/01/2024

No dia 29 de janeiro de 2024 se comemoram os 20 anos do lançamento da campanha “Travesti e Respeito” pelo Ministério da Saúde do primeiro governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no que ficou marcado como o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Aproveito a efeméride para denunciar a transfobia institucional que tem sido praticada por legisladores de forma covarde contra nossa população de travestis, homens e mulheres trans e pessoas não-binárias. Para tanto, me apoiarei na brilhante reportagem especial produzida por Dani Avelar para o caderno Cotidiano da “Folha de S. Paulo”, deste 29 de janeiro (“Brasil tem pelo menos 77 leis antitrans em vigor em 18 estados”).

De acordo com o levantamento feito em todos os municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes – que representam 5,7% do total, mas 57% de toda a população brasileira – até os dias atuais, já foram aprovadas 77 leis que restringem os direitos fundamentais e as liberdades individuais de pessoas transexuais nos legislativos de âmbito municipal e estadual – não há menção ao federal, pois nenhuma lei antitrans foi aprovada em Brasília ainda. Quando se analisa a questão federativa, 72 ou 93,5% do total das leis antitrans foram aprovadas em Câmaras Municipais e 5 ou 6,49% delas foram aprovadas em Assembleias Legislativas. A maioria das legislações municipais transfóbicas se concentra nas regiões Sul e Sudeste, enquanto as legislações estaduais transfóbicas foram aprovadas no Amazonas, em Rondônia e no Paraná.

Já quando analisadas no tocante aos temas tratados, as 77 leis promulgadas, isto é, que atualmente estão em vigor podem ser divididas da seguinte forma: 30 ou quase 39% do total veda o uso e o ensino oficial da linguagem neutra em estabelecimentos de ensino público; 26 ou quase 34% do total veda o respeito à identidade de gênero de pessoas trans no uso do banheiro; 14 ou aproximadamente 18% do total trata dos Planos de Educação (em geral proibindo o ensino da “ideologia de gênero”); 2 proíbem o respeito à identidade de gênero de pessoas trans nas competições esportivas, mesmo número de leis promulgadas que proíbem publicidade com a temática LGBTQIAPN+ e que censuram as Paradas do Orgulho; por fim, uma única lei foi aprovada restringindo o acesso do direito à saúde para pessoas trans.

Chama a atenção da jornalista e do leitor que os legisladores desperdicem tanto de sua energia para aprovar normas a respeito das quais o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou, mais especificamente normas que vão em sentido contrário ao entendimento já pacificado pela jurisprudência do Tribunal. Por exemplo, em relação à proibição da chamada “ideologia de gênero”, o STF já afirmou que configura censura à liberdade de ensinar e ao princípio do pluralismo político (ADIs 5537, 5580, 6038 e ADPFs 461, 465 e 600). E em relação à proibição da chamada linguagem “neutra”, o STF também já afirmou que não compete somente ao Congresso Nacional criar leis sobre a educação, não aos Estados e Municípios, invalidando as leis por eles criadas (ADI 7019).

Em relação ao tema do respeito à identidade de gênero de pessoas trans no uso do banheiro, como já chamei a atenção dos leitores em outras oportunidades, o tema aguarda uma definição por parte do Supremo desde novembro de 2015, quando o julgamento do Recurso Especial n. 845.779-SC foi suspenso, a pedido do Ministro Fux. Até agora, temos dois votos favoráveis pelos Ministros Edson Fachin e Roberto Barroso, atual presidente do STF. Desde junho de 2023 o processo foi devolvido para julgamento pelo Min. Fux e cabe à sociedade civil organizada fazer pressão para que o processo seja pautado durante a gestão do Min. Barroso, publicamente reconhecido como um aliado da causa LGBTQIAPN+ e que, por isso, pode costurar não apenas um julgamento favorável à comunidade trans, mas sobretudo uma tese que de fato auxilie na defesa dos direitos das pessoas trans, quando for preciso acionar o Judiciário. 

Quanto à proibição de que pessoas trans tenham sua identidade de gênero respeitada nas competições esportivas, não encontrei nenhuma notícia a respeito de quaisquer ações judiciais que questionem referidas leis em trâmite atualmente – o mesmo em relação às leis que censuram publicidade para pessoas trans. Já no tocante à censura do acesso de pessoas trans à Parada do Orgulho LGBTQIAPN+, recordo que foi objeto do meu artigo anterior para esta coluna (você pode ler clicando aqui), em que analiso as ADIs 7584 e 7585

Com relação à restrição ao acesso à saúde, temos um excelente exemplo na cidade de São Paulo. A Lei Municipal nº 17.574/2021, que previa a distribuição de absorventes íntimos para mulheres cis pelo Poder Público, a fim de promover a dignidade menstrual dessas pessoas, de modo proposital deixou de incluir homens trans (que também possuem vagina e, portanto, também menstruam). Assim, a lei foi questionada no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que declarou sua inconstitucionalidade, determinando que ela fosse passasse a ser interpretada de modo a incluir entre a população-alvo os homens transexuais e demais pessoas transmasculinas. A ação judicial é de número 2179353-34.2021.8.26.0000.

A jornalista Dani Avelar chama nossa atenção para o crescimento exponencial dos novos projetos de lei – PLs transfóbicos promulgados em 2023 em comparação com o ano anterior – o crescimento é de um terço. Porém esse número é apenas a expressão de um esforço articulado muito maior, que envolve alguns dos maiores partidos políticos brasileiros, os quais propuseram um total de 293 projetos de lei somente no ano passado. Não podemos perder de vista que, até que sejam aprovados e sejam promulgados, eles ocupam o tempo das Assembleias, das Câmaras e do Congresso Nacional, pautando debates e demandando a energia dos representantes do povo, que são pagos para defender os melhores interesses da população. 

Este momento – da propositura dos projetos de lei – também foi objeto de estudo pela jornalista autora da reportagem. De acordo com ela, do total de 293 PLs propostos em 2023, 245 ou 83,41% do total ainda está em tramitação, podendo vir a se converter em lei; 30 ou 10,23% do total foi arquivado; 7 ou 2,38% do total já foi aprovado; e somente 11 ou 3,75% do total chegou à fase final, isto é, foi promulgado. Os números permitem afirmar, me parece, que existe uma tentativa de instrumentalizar, isto é, de usar o sofrimento de pessoas trans, a partir de um regime de segregação jurídica promovido por legisladores descompromissados com os valores democráticos e pluralistas da nossa Constituição de 1988. Em contrapartida, a baixa taxa de promulgação de promulgação dos seus projetos de lei propostos (3,75%) permite concluir que esses legisladores estão pouco preocupados em apresentar resultados legislativos consistentes, e sim com fazer barulho, usando a dor de pessoas trans para manter sua base política mobilizada e obter espaço na mídia, mesmo que, para isso, seja necessário propor uma legislação flagrantemente inconstitucional.

Em relação à esfera de tramitação, isto é, em qual âmbito federativo tramitam os projetos de lei propostos em 2023, existe uma prevalência das Câmaras Municipais e das Assembleias Legislativas (124 projetos de lei em cada casa, o que equivale a 42,26% do total), em detrimento do Congresso Nacional (com 45 projetos de lei, o que equivale a 15,35%). Isso pode ser facilmente explicado pela prevalência numérica das Câmaras e Assembleias (o Brasil tem quase 6 mil municípios, 26 estados, mais o Distrito Federal), enquanto no Congresso Nacional há um número proporcionalmente muito menor de parlamentares (513 deputados federais e 81 senadores). Para além do fator numérico, Dani Avelar destaca também a análise de Amanda Souto Baliza, presidente da comissão de diversidade sexual e de gênero do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB: “a bandeira antitrans ainda não tem uma base forte o suficiente para aprovar leis federais que pudessem promover uma segregação mais intensa”. Some-se a isso o fato de que o movimento social LGBTQIAPN+ está atento e mobilizado contra eventuais retrocessos, como a aprovação do Projeto de Lei n. 580/2007 na Comissão de Previdência da Câmara dos Deputados, que proibia o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Considero pertinente nos debruçarmos, ainda, sobre os partidos políticos dos autores dos 293 projetos de lei do ano de 2023. A reportagem destaca cinco principais partidos. O partido que mais apresentou projetos de lei transfóbicos foi o Partido Liberal – PL, do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, com 91 projetos de lei ou 31,05% do total (acredito que sem surpresas para ninguém). Em seguida, temos o Republicanos, patrocinando 29 projetos de lei transfóbicos ou 9,89% do total. Para quem não se recorda, este é o partido do ex-vice-presidente da República Hamilton Mourão, para quem criminalizar a homotransfobia era desnecessário; da ex-ministra dos Direitos Humanos e atual senadora Damares Alves, que não investiu um centavo em 2022 com a população LGBTQIAPN+; e o atual governador de São Paulo Tarcisio de Freitas, negacionista da redução de mais de 80% da letalidade policial em São Paulo causada pela implantação das câmeras corporais. Em seguida, na terceira posição, patrocinando 23 projetos de lei transfóbicos ou 7,84% do total, temos o União Brasil, conglomerado de políticos sem uma identidade bem definida, senão o pragmatismo e uma tendência a se aproximar de ideais conservadores (resultado da fusão do DEM com o PSL). Entre seus representantes estão os governadores Ronaldo Caiado (GO), Wilson Lima (AM) e Marcos Rocha (RO) – estes dois últimos governam justamente estados em que estão em vigor leis antitrans. Também são filiados ao União Brasil os senadores Sérgio Moro (PR) e Davi Alcolumbre (AP). Logo em seguida, apresentando 17 projetos de lei antitrans ou 5,8% do total, temos o Partido Progressista – PP, do ex-ministro-Chefe da Casa Civil de Bolsonaro Ciro Nogueira (PI). Conhecido por seu pragmatismo, o PP compõe o famoso “Centrão”, bloco de partidos que atualmente dá sustentação ao governo Lula em nível federal. Enfim, a reportagem cita o Movimento Democrático Brasileiro – MDB, cujos legisladores apresentaram 8 projetos de lei ou 2,73% do total. Para quem não está familiarizado, o MDB constitui um verdadeiro mosaico de caciques regionais, de Michel Temer, a Simone Tebet até Rubens Requião, no Paraná, mais à esquerda. O MDB também faz parte da gestão Lula atualmente. Dentre todos os cinco citados, apenas o PL não faz parte da base de sustentação da atual gestão do governo federal, o que é curioso e indica a falta de coesão ideológica dos partidos que compõem a base do governo Lula. Devo lembrar, no entanto, que os projetos de lei antitrans envolvem parlamentares em nível municipal e estadual, de modo que os nomes aqui citados – a menos que suas opiniões tenham sido expressamente mencionadas – servem como referências para ajudar na associação com seus respectivos partidos políticos.

A jornalista Dani Avelar nota, ainda, que, desde que o bolsonarismo passou para a oposição, no ano de 2023, houve um aumento exponencial da propositura de projetos de lei com o objetivo de atingir a cidadania de pessoas trans, inclusive à revelia de decisões já tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, conforme já exposto no início do artigo. Em entrevista para a jornalista, a especialista Amanda Souto Baliza explica que a estratégia de atuação desses grupos é a seguinte: planta-se desinformação contra a comunidade trans, que logo se espalha por meio das redes sociais. De forma coordenada, são distribuídos projetos de lei para legisladores de diferentes instâncias (Câmaras e Assembleias, por exemplo), como forma de reação, aproveitando-se do pânico moral instaurado na sociedade. Assim, os projetos de lei são propostos como um meio de aproveitar o engajamento gerado pelas notícias falsas, independente de virem ou não a serem aprovados. O mais importante é que pautem engajamento, debates, curtidas, compartilhamentos, impulsionando atores políticos e pautas conservadoras nas redes sociais e nos legislativos. E como o volume de trabalho dos projetos de lei acaba sendo muito grande, o movimento social trans e os tribunais ficam sobrecarregados, sendo incapazes de reagir à altura da ameaça representada aos direitos dessas minorias. A especialista acredita também que a atuação antitrans ou transfóbica desses parlamentares servirá de publicidade ou plataforma política na campanha para as eleições municipais de 2024, o que reforça a impressão de que a cidadania da população trans é rifada, em nome do capital político de parlamentares reacionários.

Diante dessa ameaça, penso que, na qualidade de aliado do movimento trans, algumas propostas podem e devem ser fomentadas – o que não significa que seja fácil, mas proponho um exercício de reflexão. 

Primeiro, acredito que o Projeto de Lei n. 2630/2020, que busca regulamentar as redes sociais, deve ser discutido publicamente, aprimorado e votado, a fim de que as redes sociais deixem de ser uma arena do vale-tudo. Atualmente os instrumentos para controle sobre conteúdo existem, especialmente a partir da perspectiva do Marco Civil da internet, mas penso que existe espaço para aprimorar esses mecanismos, com o objetivo de que as plataformas atuem de forma mais pró-ativa contra fake news – que, a propósito, não constitui um tipo legal (um crime) específico no Brasil. 

Por segundo, penso que outra estratégia seria aprimorar o advocacy do movimento trans a partir de alianças no mesmo modelo proposto por Harvey Milk nos anos 1970: a partir da convicção de que somos parte de uma minoria, devemos estabelecer parcerias com outros atores sociais que também constituem minorias e que se interessem em unir forças de forma programática conosco, para somarmos uns nas lutas dos outros. Penso que podemos contar com aliados da sociedade civil, como o movimento negro, o movimento de mulheres, dos trabalhadores (reunidos na forma de associações formalmente constituídas e que, por isso, têm legitimidade para acionar o Judiciário), partidos políticos, parlamentares e instituições como a Defensoria Pública, a OAB e o Ministério Público, a fim de que se somem a nossas lutas no Judiciário, pois não se tratam de lutas exclusivas da comunidade trans – são, na verdade, lutas por uma democracia pluralista (Art. 1º, inciso V, CF/1988). Esses parceiros podem atuar, por exemplo, em ações judiciais por meio da apresentação de um parecer favorável aos nossos pedidos, chamado de amicus curiae, previsto no artigo 138 do Código de Processo Civil. Além disso, o movimento social trans pode e deve dialogar com os Ministérios Públicos locais e com a Procuradoria-Geral da República a fim de exigir que ela cumpra seu papel de fiscal da Constituição, ingressando com ações de controle concentrado de constitucionalidade junto aos Tribunais de Justiça e do STF nos casos de controle repressivo de constitucionalidade, isto é, depois que as leis antitrans já foram aprovadas e promulgadas, com o objetivo de que elas sejam anuladas pelo Poder Judiciário na instância respectiva.

Por terceiro e último, proponho também que o movimento social trans e seus aliados, provoquem parlamentares a acionar o Judiciário por meio da impetração de Mandado de Segurança para que os juízes competentes realizem o devido controle preventivo de constitucionalidade formal das Leis e, no caso dos Projetos de Emenda Constitucional, também o controle preventivo de constitucionalidade material, conforme entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado de Segurança n. 32.033-DF. Em outras palavras, os parlamentares – e somente eles – podem acionar o Judiciário para pedir a suspensão da votação de Projetos de Lei única e exclusivamente quando ocorrer violação de regras formais do processo legislativo, isto é, regras do processo de elaboração das leis. Um exemplo hipotético: se uma lei complementar precisa ser aprovada por maioria qualificada dos deputados, isto é, 50% mais 1, não pode ser aprovada por maioria simples (metade dos presentes); assim, mediante provocação de um parlamentar, o Judiciário pode e deve declarar nula referida norma. Um exemplo clássico de interferência legítima do Judiciário no processo de fazedura das leis pelo Legislativo é do Pacote Anticorrupção (PL nº 4.850/2016), em que o Min. Luiz Fux concedeu a liminar em sede do Mandado de Segurança nº 34.530-DF, determinando o retorno do Projeto de Lei do Senado para a Câmara. 

A profissionalização e a institucionalização da defesa dos direitos da população trans é uma resposta não apenas possível, como também proporcional e necessária à discriminação institucional promovida por legisladores bolsonaristas, que insistem em usar de forma tão covarde o sofrimento de travestis, mulheres e homens trans e pessoas não binárias para obter dividendos eleitorais, em afronta à nossa jurisprudência constitucional.

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