Música

"Fiz história na Música Popular Brasileira", declara Divina Valéria, primeira mulher trans a gravar um disco no Brasil, em entrevista exclusiva

Nenhum roteirista de Hollywood conseguiria criar uma história tão rica de elementos quanto foi e é a vida da cantora e atriz Divina Valéria.

Divina Valéria
Divina Valéria

No Dia Mundial do Combate à Lgbtfobia, Observatório G faz uma homenagem à cantora e atriz Divina Valéria, a primeira mulher trans a gravar um disco no Brasil, que no próximo mês completa 80 anos. Além da homenagem, teremos ao final desta edição uma entrevista ping-pong com esta grande estrela da cultura queer brasileira.

Divina Valéria é uma das figuras indispensáveis pra quem quer conhecer a história da música e do teatro brasileiros.

Iniciou sua carreia artística no dia 18 de setembro de 1964 no antológico show The International Set de Jean Jacques, no Rio de Janeiro, o primeiro show de vulto que trazia mulheres trans e drag queens para os palcos do Brasil. Em razão do seu desempenho no TIS, foi agraciada com troféus na categoria revelação do ano pelas prestigiadas e hoje extintas emissoras de televisão Continental e Excelsior.

Em seguida, o mesmo elenco do TIS integrou o musical “Les Girls”, dirigido por Mário Meira Guimarães. Entre as atrizes do espetáculo estava Rogéria, grande amiga de Valéria que durante décadas brilhou muito no Rio de Janeiro enquanto Valéria se tornava uma estrela internacional na Europa.

Em 1965, em função do repertório que cantava no espetáculo “Les Girls”, Divina Valéria grava seu primeiro e único disco compacto na gravadora pernambucana Mocambo. Esta informação será confirmada na entrevista subsequente que Divina Valéria nos concedeu.

No repertório do álbum está de um lado um medley de sambas primorosos de compositores como Zé Keti, Ataulfo Alves, Cartola, Monsueto e a canção “A Felicidade” da dupla Tom Jobim & Vinícius de Moraes. Do outro lado do compacto há o grande sucesso fonográfico de Valéria, a marcha-rancho “Praça Onze”, composta pelo rei das marchinhas, João Roberto Kelly, em parceria com o compositor e ator Chico Anísio.

Outra passagem que merece destaque da biografia da Divina Valéria é sua carreira na Europa, que teve início quando ela foi à Espanha para trabalhar numa casa de shows como cantora. A casa foi fechada pouco depois que ela chegou em solo espanhol, em razão do policiamento conservador da ditadura de Francisco Franco(1939-1975).

Depois da Espanha, Valéria trabalhou na França, no antológico Carousel de Paris, em virtude de uma carta de recomendação da diva trans Coccinelli, sua grande amiga.

Outro fato digno de nota é a quantidade de amigas cantoras que Valéria teve e ainda têm na vida. Algumas de destaque foram Marlene e Elizeth Cardoso, que considerava Valéria a maior intérprete das músicas de seu repertório.

Uma curiosidade, ainda em tempo, interessantíssima: Divina Valéria já foi retratada pelo pintor modernista Di Cavalcanti, sendo a única mulher trans da história a ser retratada por ele, o que a orgulha muito.

Além do teatro, Valéria também fez trabalhos notórios no cinema e na televisão.

Na atual cena do cinema brasileiro, Valéria atuou no curta-metragem “Marie”(2019), dirigido por Leo Tabosa e protagonizado pela atriz trans Wallie Ruy. O filme rendeu à Valéria e à Wallie o Prêmio Especial do Júri do Festival de Cinema de Gramado.

Recentemente, na televisão, interpretou a si mesma na novela “Travessia”(2022-2023), escrita por Glória Perez para a TV Globo.

Outro ponto de ligação forte que Divina Valéria faz do Brasil com a França é a sua presença anual nas celebrações da suntuosa Lavagem da Madeleine em Paris, que reúne inúmeros brasileiros, sobretudo baianos adeptos do candomblé.

Divina Valéria está em cartaz com o show “Karaokêra Kerida” junto com o Coletivo Acuenda, que terá uma apresentação gratuita amanhã(18/05), no Sesc Consolação, em São Paulo-SP, a partir das 19 horas.

Mesmo com a agenda preenchida, Divina Valéria nos concedeu ontem(16/05) uma entrevista ping-pong que o leitor de Observatório G pode ler na sequência.

Observatório G: Como você se sente sendo a primeira mulher trans a ter gravado um disco no Brasil?

Divina Valéria: Privilegiada…fiz história na Música Popular Brasileira!!!


Observatório G: Quais artistas musicais foram mais influentes na sua carreira como cantora?

Divina Valéria: Elizeth Cardoso, que virou minha madrinha  artística!


Observatório G: O que acha da música brasileira atual? Quais artistas te despertam mais interesse?

Divina Valéria: A música brasileira atual…cada vez que eu escuto  gosto menos(rindo).

Observatório G: Existiam outras cantoras trans que foram contemporâneas suas e que registraram trabalhos em disco?

Divina Valéria: Existiam, sim! A Coccinelle de Paris e a Amanda Lear(franco-vietnamita).

Observatório G: Quais os assuntos mais te despertam interesse pra levar às pessoas através do seu canto?

Divina Valéria: Eu só canto aquilo que sinto! Onde vejo verdade, sendo assim, interpreto como tal!

Observatório G: Como você também é atriz, gostaria que falasse os prós e contras de cada uma das linguagens: a do teatro, a do cinema e da TV.

Divina Valéria: Teatro é ali, tête-à-tête, o público reage com a nossa emoção…já no cinema e na TV esperamos muito exercício  de paciência(rindo).

Observatório G: Gostaria que falasse um pouco do porquê escolheu aquele repertório que está no seu compacto…

Divina Valéria: Foram escolhidas porque era o repertório  que eu cantava no “Les Girls”.

Observatório G: Você acha que figuras como você e a sua amiga Rogéria foram importantes pra que o Brasil se tornasse um país menos transfóbico?

Divina Valéria: Naturalmente…nós, com nossa arte, superamos tudo!

Observatório G: Como o seu trabalho é recebido em outros países fora do Brasil?

Divina Valéria: Com o público sempre de pé!

Observatório G: O que você acha da indústria fonográfica do Brasil?

Divina Valéria: Uma máfia! (rindo)

Observatório G: Que atrizes e cantoras trans estrangeiras você mais gosta?


Divina Valéria: Gosto muito da Bibiana Fernández, atriz dos filmes do Pedro Almodóvar.

Observatório G: Como você vê a comunidade LGBTQIAPN+ no Brasil futuramente?

Divina Valéria: Eu não vejo nada porque não gosto de estar em caixinha nenhuma. Sigo eu, Divina Valéria,  com minha arte e forma de viver.

Observatório G: Como foi a recepção do seu disco na época em que ele foi lançado?

Divina Valéria: Não foi o que eu esperava. Havia a censura que proibiu a distribuição. Hoje só os colecionadores têm meu disco, mas ele está disponível no You Tube também…

Divina Valéria, essa artista encantadora, merece todos os aplausos, pois é o tipo de artista que de tão empenhada e caprichosa com o próprio ofício, acaba se confundindo com ele. É uma obra, uma artista e uma mulher; múltipla e única Divina Valéria.